#5. O menor do Reino de Deus (Lc 7.24~28)

Humildade é atitude! (Fl 2:1~11)

A humildade é algo muito prático. Podemos definir a humildade de várias maneiras. Certa vez, por exemplo, quando eu pastoreava uma igreja numa comunidade carente aqui em São Paulo, eu perguntei a todos se alguém se considerava realmente humilde: apenas uma irmã levantou a mão. Curioso, perguntei a ela: “por que a irmã se considera humilde?”. Ela me respondeu: “pastor, eu sou pobre”. E quem disse que ser pobre materialmente é sinônimo de ser humilde? Podemos pensar na humildade como auto-negação: não, você é melhor do que eu, eu não sou nada, quase um complexo de inferioridade. Ou também humildade como um conceito subjetivo, uma virtude interior desejável.

O texto que lemos é carregado de sentido e de significado, mas a sua mensagem básica é simples e prática: Humildade é atitude!

Nessa série de mensagens, o pastor Joel veio compartilhando com vocês alguns “aplicativos” fundamentais do Reino de Deus. Todos eles: a obediência, o perdão, a confissão, a confiança só são possíveis se formos humildes.

keep-calm-and-stay-humbleConfesso que falar de humildade é algo muito difícil. Eu, por exemplo, não me considero uma pessoa lá muito humilde. Creio que muita gente aqui já é casada, mas uma das primeiras lições que você aprende depois do casamento é que você é muito orgulhoso. Vira e mexe, Deus usa a minha esposa para me dizer: “meu! você é muito orgulhoso!”. E somos mesmo! É por isso que o Espírito Santo quer falar aos nossos corações hoje. Oro para que cada um de nós possamos ouvir a voz do Senhor nessa manhã.

Quero ser bastante prático: Com base nesse texto, falaremos de três coisas sobre a humildade: O que é ser humilde, Como ser humilde e Para quê ser humilde. Definição, Aplicação e Conseqüência.

1. O que é ser humilde?

Vamos ler novamente os versículos 1 e 2: “Se por estarmos em Cristo, nós temos alguma motivação, alguma exortação de amor, alguma comunhão no Espírito, alguma profunda afeição e compaixão, completem a minha alegria, tendo o mesmo modo de pensar, o mesmo amor, um só espírito e uma só atitude”.

O apóstolo Paulo está se dirigindo à Igreja de Filipos, na região da Macedônia, onde hoje é a Grécia. Paulo amava muito essa igreja pois ele mesmo fundara essa comunidade. Essa igreja também participava ativamente do ministério de Paulo provendo recursos financeiros para a sua missão. Em sua carta, a preocupação de Paulo é que todos nós estejamos unidos dentro do amor de Jesus Cristo, em pensamento e em atitude. Falar de unidade é fácil, mas vai colocar em prática: todos somos diferentes, temos ideias diferentes, até Deus mesmo trata com cada um de nós de maneira personalizada: como podemos ter, nas palavras de Paulo, “o mesmo modo de pensar, o mesmo amor, um só espírito e uma só atitude”?

É dentro dessa preocupação que o apóstolo Paulo vai nos ensinar, em primeiro lugar, O QUE É ser humildade. Leia comigo os versículos 3 e 4: “Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a si mesmos. Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros”.

Meus irmãos, hoje vivemos em um mundo em que cada um é por si e Deus é para todos. Ninguém se sente a vontade em dividir alguma coisa com alguém, com um desconhecido, por exemplo. Um dos maiores dramas e dificuldades dentro da igreja é que falta comunhão entre as pessoas, falta relacionamentos sinceros e profundos entre os irmãos, falta a vontade de sair da zona de conforto para servir o próximo. A vida cristã tornou-se apenas um exercício de auto-ajuda, extremamente individual e até egoísta: “eu vou crer direitinho, mas não mexam comigo… Não peçam para segurar a mão do irmão para orar com ele… Me deixem no meu cantinho com meu Jesus”. A questão é que não existe cristianismo fora do âmbito da comunidade: ninguém pode ser cristão sozinho! Jesus nos ensinou a orar “Pai nosso” (cf. Mt 6:9) e não “meu Pai que estás nos céus”.

A humildade nasce exatamente no contato com o outro, com o próximo. É quando, nas palavras do apóstolo Paulo, passamos a enxergar que os interesses dos outros irmãos, das outras pessoas, são tão, ou até mais, importantes do que o meu próprio interesse.  Não existe uma vida humilde solitária, pois a humildade é sempre em relação a alguém.  Tentar ser humilde pode se transformar no ato mais egoísta do mundo: basta que o foco esteja apenas em você e não no seu próximo. Então, esqueça essa ideia de ser humilde apenas para você se sentir bem, com as suas próprias forças, para você ficar “bem na fita com Deus”. Você só poderá ser humilde quando estiver em contato com Jesus e com as pessoas, com os irmãos, em comunidade.

Ok, Paulo. Humildade é considerar os outros superiores e os interesses dos outros tão ou até mais importantes do que o meu. Mas na real, quem pode viver assim? Todos somos seres humanos, com um instinto de auto preservação à flor da pele, não? De fato, esse negócio de ser humilde não é fácil mesmo. O maior entrave, a maior pedra no caminho é, com certeza, o “eu mesmo”, o meu orgulho, a minha auto-suficiência. Ninguém gosta de se humilhar pois vai contra a nossa própria natureza humana. Então, como eu posso ser humilde? A Palavra de Deus nos dá uma resposta muito simples e prática: imite Jesus!

2. Como ser humilde?

Quer mesmo ser humilde? Imite Jesus. Literalmente, siga o Mestre! Siga o Mestre, porque humildade não é apenas um conceito subjetivo, uma virtude interior, mais sim, atitude (φρονέω, pensamento, disposição mental, atitude).

Qual é a atitude que Jesus que quer tenhamos em relação a Deus e em relação às pessoas? A mesma atitude de Jesus! Simples? Só isso? Sim, só isso!   O Evangelho é simples assim! “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus” (vr. 5). Mas, péra lá: das inúmeras atitudes que Jesus teve, qual delas eu devo imitar para ser humilde?

Hoje estamos a exatamente duas semanas da Páscoa. Muitos nem se deram conta disso, mas tradicionalmente, os cristãos celebram a Quaresma, os quarenta dias que antecedem a sexta-feira da paixão, o dia que Jesus morreu na Cruz. Talvez não exista época melhor no ano do que essa para pensar na atitude mais representativa de Jesus quando o assunto é humildade: a cruz!

Queria ler com vocês os versículos 5~8: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até à morte, e morte de cruz!”.

Sempre me perguntei: Se Jesus é Deus, com certeza, Ele poderia inventar outro caminho sem ser a Cruz, para nos salvar. Mas ao longo da minha caminhada com Jesus eu percebi que por exatamente Jesus ser Deus é que Ele teve a condição de nos salvar por meio dessa atitude tão humilde. O Rei da Glória, do Senhor do Universo veio ao mundo e se submeteu às mais humildes condições de vida. Ele morreu pregado numa cruz como criminoso para saldar o preço do nosso pecado e nos tornar sua própria família, seu povo, e Reino de Deus.

Meus irmãos, quando olhamos para a cruz, vemos estampado nela a humildade de Jesus, que embora sendo Deus, morreu como um cordeiro, o “cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo” (cf. Jo 1:29). Ele é o Mestre que lava os pés dos seus discípulos. É Bom Pastor que dá a sua própria vida em favor de suas ovelhinhas.

Ser humilde é replicar em nossa vida a Cruz de Cristo. Ninguém aqui precisa pegar uma cruz e se pregar nela, literalmente. Mas cada um aqui, todos nós, eu diria, precisamos pregar na Cruz do Calvário nosso egoísmo, orgulho, nosso pecado, nossa carne. À medida que você segue Jesus de Nazaré, você vai se tornando como Ele, humilde!

Sim, para sermos humildes, precisamos subir à Cruz com Jesus. Em Gálatas 2:19,20, o apóstolo Paulo diz assim: “Pois, por meio da Lei eu morri para a Lei, a fim de viver para Deus. Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora eu vivo no corpo, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”.

Quer ser humilde? Imite Jesus: obedeça a Deus até as últimas conseqüências: se for preciso, até a morte. Até que todo o seu egoísmo morra, até que toda sua auto-suficiência definhe. Como ser humilde? Imite Jesus: suba à Cruz junto com Ele, porque humildade não é apenas um conceito subjetivo ou uma virtude desejável, mas sim, atitude!

3. Para quê ser humilde?

Jesus, embora sendo Deus, não hesitou em vir ao mundo, assumir a forma humana, vestir as nossas roupas, comer a nossa comida, viver no meio de nós. Ele veio e viveu uma vida de absoluta pureza e humildade. O Senhor do Universo, o Rei dos reis e Senhor dos senhores tocava nos doentes, conversava com os marginalizados, comia com os pecadores, amava as pessoas… Jesus mostrou que nosso Deus é humilde. Que divino “paradoxo”, não?

Jesus viveu na terra como um cordeiro: manso, humilde. Deus deseja que cada um de nós possamos imitar essa humildade, que não é apenas teórica, mas muito prática, uma humildade que é traduzida em atitude!

Então, qual é a conseqüência da humildade no Reino de Deus? Ganhamos alguma coisa sendo humildes? Parece que não né? Parece que só temos a perder com isso… Vamos ler os versículos 9~11: “Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai”.

Meus irmãos, repare que o texto diz que foi Deus quem exaltou Jesus. Deus é a única pessoa que pode exaltar alguém. A morte de Jesus não foi em vão: ao terceiro dia, conforme as escrituras, Deus ressuscitou Jesus e o exaltou à mais alta posição de poder e autoridade no universo. Por causa da obediência de Jesus, Deus deu a Ele todo o poder sobre todas as coisas! Jesus nos ensinou por meio de sua própria vida que os humildes serão exaltados por Deus! No Reino de Deus, quem se humilha será exaltado!

O Reino de Deus tem uma dinâmica, uma ética, muito diferente da nossa. Não sei se alguém já participou de uma entrevista de emprego. Eu já fiz muitas entrevistas na vida. Nenhum empregador espera que o seu entrevistado entre na sala de entrevista e diga: “Patrão eu não sou nada diante do teu poder… eu não sou nada, sou um pecador, tenho um montão de defeitos, preciso aprender muito, não sei se serei capaz de trabalhar bem nessa empresa. Sabe patrão, um dia eu vou te enganar, porque sou pecador mesmo…”. Na sala de entrevistas, você tem que provar que é melhor do que todos os outros candidatos para ser contratado, não? Pois é, mas no Reino de Deus, você tem que provar com as suas atitudes (disposição mental e prática) que você é humilde, que você depende de Deus para tudo, que você obedece a Deus até as últimas conseqüências, que você imita, replica e aplica no seu viver a vida de Jesus, que você vive a Cruz!

O Reino de Deus é assim: para viver, primeiro tem que morrer; para ser discípulo, tem que carregar a cruz; para ser o primeiro, tem que ser o último; para ser exaltado, tem que se humilhar! Um Reino onde as crianças tem mais poder do que os adultos, um Reino onde a oferta de uma pobre viúva vale mais do que a oferta de um grande magnata. Um Reino onde a essência vale mais do que a forma, onde o interior muda e transforma o exterior. É desse Reino que fazemos parte: Jesus nos convida a termos atitudes que são compatíveis com esse Reino.

Queria compartilhar um último versículo com vocês. O apóstolo Pedro diz o seguinte: “Semelhantemente vós jovens, sede sujeitos aos anciãos; e sede todos sujeitos uns aos outros, e revesti-vos de humildade, porque Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes. Humilhai-vos, pois, debaixo da potente mão de Deus, para que a seu tempo vos exalte” (1Pe 5:5,6, ARA).

Meus irmãos, a nossa humildade terá recompensa! Deus não quer que sejamos humildes para mostrar que não somos nada, que não temos valor algum, para nos ver sofrer e rastejar no chão. Muito pelo contrário: Deus quer nos tornar humildes para que Ele possa nos usar em algo grande. Ele quer que sejamos vasos que se moldam à sua Vontade.  Deus deseja escrever a Sua história por meio de nossas mãos, de nossas vidas, seja influenciando e abençoando uma vida que seja ou milhares…

Deus dá graça aos humildes. Deus exalta os humildes. Quem aqui não quer ser exaltado? Todos queremos. O pastor Daniel pregou no domingo passado que querer ser exaltado é um anseio legítimo. O problema não está no querer ser exaltado, propriamente dito, mas no como queremos ser exaltados! É melhor sermos exaltados por Deus, sendo primeiro humildes e obedientes a Ele, do que construir a nossa própria torre de Babel, do que querer chegar lá com meu esforço, de maneira egoísta, às custas de tudo e de todos. Você deseja ser exaltado por Deus? Aprenda primeiro a ser humilde. Porque no Reino de Deus, os humildes serão exaltados.

Conclusão.

Ser humilde é um mandamento. Humildade é atitude! Ainda podemos ouvir os ecos da mensagem de Paulo: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus”. Quanto mais imitamos Jesus, mais humildade nos será concedida. Quando mais de Jesus vivermos, mais do nosso ego, dos nossos pecados, das nossas esquisitices serão crucificadas. Quanto mais perto do mestre estivermos, mais seremos exaltados junto com Ele!

Meus amados irmãos, que nessa manhã, O Espírito Santo inunde o coração de cada um de vocês com uma santa disposição de imitar Jesus até as últimas conseqüências, pois essa é o único caminho que nos fará filhos e filhas mais humildes.

Instale esse bendito aplicativo na sua vida.

Pr. Ki Chul Joo
Pr. Ju Ki~Chul (1887~1944)

O pastor presbiteriano Ju Ki-Chul, viveu de 1887 a 1944. Ele foi lutou pela independência da Coreia durante o domínio Japonês e foi martirizado por recusar-se a prestar homenagens e culto aos deuses do xintoísmo, uma religião que fora imposta pelos japoneses na Coreia durante esse domínio. Ele era uma pessoa que amava demais Jesus e preferiu morrer a ter que negar o seu Senhor. Há uma oração que ele escreveu que se chama: “Faz-me humilde”. Na última parte dessa oração, ele diz: 오, 주여! 저는 당신의 겸손을 사모하옵고, 당신과 같이 되기를 원하나이다: “Ó Senhor, eu anseio por tua humildade, quero ser como Tu”. Que essa seja a nossa oração essa manhã. Que essa seja nossa atitude! Amém. Vamos orar.

Datashow. Humildade é atitude! (Fl 2.1~11)

Mensagem pregada no 4o. culto da Imosp, 06 de abril de 2014.

#2. Apenas uma palavra… (Lc 7:1~10)

 

Porque um menino nos nasceu… (Is 9:1~7)

Bíblia – Being Christian, parte 2

A Bíblia é um livro mais ouvido do que lido”. Williams começa o capítulo de uma forma pouco usual. Geralmente, imaginamos nossa relação com a Bíblia em termos de uma leitura solitária, apenas uma leitura. Mas ao longo desses dois milênios de história da Igreja, as pessoas mais ouviram do que leram as Sagradas Escrituras. Mesmo hoje, de acordo com o autor, a posse física de uma Bíblia é um privilégio que milhões de cristãos ao redor do mundo não tem. Esses cristãos que não tem consigo o livro físico, memorizam e recitam os textos bíblicos. A chamada transmissão oral não é algo meramente de um passado longínquo. É uma realidade que ainda temos no mundo.

Bíblia

Ouvir é importante! A vida cristã é a vida do escutar, escutar a Palavra de Deus: “a Bíblia é o território no qual os cristãos devem ouvir Deus falando” (pg. 23). Quando lemos as Escrituras, ouvimos histórias, leis, poemas, profecias das quais temos de escutar e a partir delas ouvir a voz de Deus. Imagine Jesus, por exemplo, contando uma parábola. Jesus espera que ao ouvirmos sua estória possamos nos perguntar “onde estamos nisso tudo?” e “quem somos?”. “Você não pode tirar suas conclusões enquanto a estória está sendo contada” (pg. 27). Entretanto, isso não quer dizer que todas as nossas respostas e atitudes em reação à Bíblia serão boas, mas nos tornamos capazes de, à luz da Palavra em si como um todo, de responder de maneira mais amorosa e fiel aos propósitos divinos.

O grande chamado desse capítulo é: “ouça TODA a História!”. Williams ressalta que não podemos cair na tentação de pegar apenas uma parte da narrativa bíblica e torná-la um modelo para o nosso próprio comportamento (cf. pg. 29). Precisamos, sim, nos atentar a como as pessoas reagiram diante da grande História de Deus, que não é apenas a de Noé ou de Abraão, mas é também a nossa.

Williams é muito conciso ao lidar com a questão da interpretação da Bíblia. Ele cita a grande disputa teológica entre aqueles que a lêem com um óculos mais literal e os que defendem uma abordagem mais liberal. O autor diz “a Bíblia não pretende ser uma mera crônica de eventos passados, mas uma comunicação viva da parte de Deus, dizendo-nos, agora, o que precisamos saber para a nossa salvação” (pg. 33). Assim, não podemos ser nem obsessivos em relação à literalidade do texto e nem tão pouco liberais. Temos que levar a sério a História de Deus.

Devemos ouvir a História, História essa que converge em Jesus. Williams defende uma leitura cristocêntrica da Bíblia. Nesse sentido, “ler a Bíblia é escutar a Deus em Jesus” (pg. 36), é escutar o Espírito Santo trazendo a história dos antigos israelitas, dos primeiros cristãos, tornando essa grande história também a nossa em Cristo.

Um ponto bem pertinente abordado pelo autor, e muitas vezes negligenciado no contexto evangélico, é a questão da tradição. De acordo com Williams, não podemos ler a Bíblia de forma isolada, individualizada. A leitura Bíblica também é um exercício a ser feito em comunidade. Numa sociedade extremamente individualista, vale a pena o resgate desse aspecto comunitário. Lemos o texto junto com os milhares de cristãos que vieram ao mundo antes de nós, que cada qual seu contexto, tentou traduzir em teologia, e em prática a mesma palavra de Deus. A tradição não pode ser um cabresto, mas também não pode ser deixada de lado. O grande perigo do excessivo desapego que temos em relação às tradições históricas é que corremos o risco de pensarmos que “inventamos a roda” ou que “descobrimos uma nova relevação divina”. A alguns dias, vi um video do Dr. Ben Witherinton III falando sobre o dispensacionalismo (http://www.youtube.com/watch?v=d_cVXdr8mVs). Ele questiona exatamente esse ponto: será que essa leitura é a mais adequada? Por que ninguém, em dois mil anos de história interpretou os textos bíblicos dessa maneira? Será que Deus deixou guardado para o século XX uma grande revelação-inovação hermenêutica? Particularmente, acho isso muito pouco provável.

Embora seja um capítulo curto, Rowan Williams acertou na mosca em sua abordagem. Precisamos voltar a “ouvir” a História de Deus, de maneira completa, de forma humilde, em comunidade, para que a partir dessa História, cujo epicentro é Cristo, possamos viver conforme a vontade de Deus.

Cabeça de burro ou A Face de Deus?

Alexamenos adora (seu) deus
Alexamenos adora (seu) deus

Em 1857 foi descoberto um antigo “grafite” que data do séc. II da Era Cristã. Retrata uma pessoa adorando um homem crucificado com a cabeça de um burro. Dizem que muitos romanos pensavam que os cristãos praticavam a onolatria (culto ao burro). O nome do “adorador” era Alaxamenos. A inscrição feita em grego antigo diz: “Αλεξαμενος ϲεβετε θεον”, ou seja, “Alexamenos adora (seu) deus“.

Os estudiosos são unânimes em afirmar que esse “grafite” romano era uma forma de escarnecer a prática da adoração de uma comunidade dita cristã a um judeu crucificado na Judeia, sob o governo de Pôncio Pilatos: Jesus de Nazaré.

O Dr. Larry Hurtado explica esse “grafite” dizendo:

“Essa “escultura” foi encontrada em uma pedra em um recinto na Colina Palatina (…) Ele mostra um opinião a respeito de Jesus e de seus adoradores posteriores em Roma, que não era muito positivo” (in Jesus among friends and enemies, pág. 10).

A nossa tendência é estranhar o fato da mensagem do Evangelho gerar tanta repulsa em nosso mundo moderno. Bobagem: as boas novas de Jesus sempre geraram incompreensão e intolerância por parte de muitos dos seus ouvintes ao longo da história. Era inconcebível para um romano ou para um grego, por exemplo, ter como um deus alguém que fora morto da forma como Jesus morreu. Mais incompreensível ainda era a alegação dos cristãos de que esse crucificado havia ressuscitado ao terceiro dia. E quanto aos judeus? Jesus era a vergonha em pessoa: a ovelha negra, o apóstata da religião de Moisés.

Se antigamente Jesus foi comparado a um burro-humano crucificado, o que diremos dos dias de hoje? Já vi Jesus sendo comparado a desde os mais sanguinários assassinos até aos mais ingênuos utopistas.

Olhando com cuidado à esse “grafite”, veio um questionamento direcionado a mim mesmo: Será que esse Alexamenos adorou esse homem crucificado com o entendimento correto de QUEM Ele, de fato, era? E eu, que Jesus estou adorando? Qual a visão que o mundo secular tem acerca desse Jesus que estou adorando? Qual é o meu testemunho do Cristo que sirvo a uma sociedade que enxerga Jesus tal como retrata esse “grafite”?

O apóstolo Paulo já dissera em 1Co 1:23 (NVI): “nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios“. Meu amigo, o Evangelho, para você, é escândalo ou A Verdade?

Para mim, a face do Cristo crucificado é a face do próprio Deus.

Leitura: Jesus among friends and enemies.

Jesus among friends and enemies
Jesus among friends and enemies

Esse livro foi indicado pelo Dr. Larry Hurtado em seu blog (http://larryhurtado.wordpress.com/2012/01/30/videos-jesus-among-friends-and-enemies/)

Não se trata de um estudo do “Jesus histórico” propriamente dito, mas sim da análise indireta da pessoa de Jesus através das pessoas que se relacionaram com ele. Toda análise é feita a partir dos Evangelhos Canônicos, levando em conta relatos “agraphos“, ou seja, relatos da vida de Jesus não-canônicos.

Os amigos de Jesus analisados na obra são: Deus e os anjos, João Batista, os discípulos, a família de Jesus, Maria Madalena, os amigos de Betânia e o “discípulo amado”. Já os inimigos de Jesus estudados são: Satanás e os demônios, líderes judeus, Herodes, Caifás, Pôncio Pilatos e Judas Iscariotes.

A obra termina com um capítulo voltado ao estudo do “Jesus histórico” através da análise dos amigos e inimigos de Jesus.

Abaixo, alguns videos de Chris Keith apresentando a obra:

Dados do livro:

  • Paperback: 352 páginas
  • Editora: Baker Academic
  • Língua: English
  • ISBN-10: 0801038952
  • ISBN-13: 978-0801038952

Quando 2 ou 3 estiverem reunidos em meu nome…. para que mesmo? “Rápida” exegese de Mt 18:15~20

Introdução

Quem já não ouviu falar, geralmente dos nossos pregadores, que “Deus está presente onde estiverem pelo menos dois ou três reunidos”? Já escutei muito essa frase dita, principalmente, quando está faltando gente para começar o culto (fazendo uma mea culpa , talvez eu já tenha me utilizado dessa frase também). Esse é um daqueles textos mal-interpretados que, quando paramos para ler com atenção, o seu sentido muda completamente daquilo que estamos acostumados a entender. Será que o texto está falando da presença de Deus em meio à reunião dos irmãos simplesmente, ou há algo a mais?

E aquele versículo que diz que supostamente “Deus concederia tudo que fosse ligado por nós aqui na terra”? Será que isso abre espaço, para que, de acordo com alguns, possamos exercer nosso poder como filhos exigindo alguma demanda junto ao Pai? Certamente já ouvi muita coisa assim… Vamos fazer uma viagem pela primeira parte do capítulo 18, explorando o contexto e aprofundando na análise do texto propriamente dito para ver se realmente esses pressupostos tidos como “verdadeiros” são de fato plausíveis de acordo com um exame mais minucioso desse texto.

Esse pequeno “comentário” é fruto de um clube “clandestino” de exegese!! (risos!!). Aos meus irmãos clandestinos, dedico esse texto!

Contexto

No capítulo 18, Mateus nos relata uma série de discursos de Jesus acerca do tratamento interpessoal dentro da comunidade dos discípulos, ou em sentido mais estrito e atual, dentro da comunidade local dos irmãos. Nessa comunidade, as lógicas empregadas do mundo são totalmente invertidas: o maior é o considerado menor e o perdão é a solução definitiva para todos os conflitos interpessoais que podem ocorrer dentro desse povo de Deus.

Dos versículos 1 a 6, vemos Jesus responder à pergunta levantada pelos próprios discípulos: “Quem é o maior no Reino dos Céus?” (Mt 18:1b). Jesus coloca uma criança no meio deles e diz que aquele que se torna humilde como a criança entrará no Reino. É interessante que Jesus não responde diretamente à pergunta dos seus discípulos. Antes, ele expõe um modelo de “práxis relacional”: quando recebemos esses “pequeninos”, nos tornamos humildes habilitados à entrada no Reino. Entretanto, para quem faz tropeçar esses “pequeninos”, o destino é o “fogo eterno”.

Em seguida, Jesus conta uma das suas mais famosas parábolas: a Ovelha Perdida, mostrando aos seus discípulos que mesmo Deus, o Pai, se importa até mesmo com o “pequenino” perdido para trazê-lo de volta ao convívio dos demais, deixando, momentaneamente as suas 99 ovelhas: “o Pai de vocês, que está nos céus, não quer que nenhum destes pequeninos se perca” (Mt 18:14).

O trecho dos versículos 15~20 é de suma importância pois apresenta, de maneira prática, como a comunidade dos discípulos deve tratar um “irmão” que tenha ofendido, ou pecado, contra alguém da própria comunidade. A grande preocupação do texto está no processo de convencimento dentro da qual o “ofendedor” é posto, a fim de que entenda a sua situação de falta com o irmão e com Deus. Toda a tradição testemunhal da Torá é trazida: da conversa particular até a persuasão pública, diante da comunidade. Entretanto, como há sempre a possibilidade do pecador não se arrepender, Jesus ensina os seus discípulos a questão do ostracismo disciplinar (cf. vr. 17). Rienecker ressalta que esse trecho nos apresenta “as instâncias corretas que devemos percorrer na comunidade” (1) quando o assunto é disciplina.

Qual é o poder que a comunidade do Reino, dos discípulos de Jesus detêm? A decisão dessa comunidade  deve refletir a vontade de Jesus. Dentro dessa análise, um discípulo de Cristo nunca é concebido fora de sua própria comunidade. Essa comunidade que tem o “poder” de perdoá-lo diante da manifestação de arrependimento, ou de condena-lo a algum tipo de ostracismo. A comunidade onde Cristo se faz presente e onde sua vontade é refletida no julgamento dessa comunidade é o padrão desejável para as deliberações sobre assuntos tão incômodos como a eventual punição de alguém pertencente ao próprio grupo de irmãos.

É a partir desse ponto que Mateus relata a parábola do Servo Impiedoso, uma estória contada por Jesus diante do questionamento de Pedro: “Até quantas vezes devemos perdoar o irmão”. Embora o Servo Impiedoso tenha sido perdoado pelo rei de uma grande dívida, não teve a capacidade de transmitir a mesma graça a um conhecido que devia infinitamente menos do que a sua própria dívida. Se o relato prático dos vrs. 15~20 trata de um “ofendedor” impenitente, a parábola do Servo Impiedoso expõe a outra faceta da moeda, onde o “ofendido” não tem a capacidade de perdoar o “ofendedor”.

Basicamente, no capítulo 18 de Mateus temos vários ensinamentos de Jesus a respeito da vida comunitária e de como o pecado deve ser lidado dentro desse grupo. É dentro desse conceito que vamos explorar mais os versículos 15~20, com a questão da presença de Jesus no meio de “dois ou três”.

Análise do texto grego.

15 Ἐὰν δὲ ἁµαρτήσῃ [εἰς σὲ] (2) ὁ ἀδελφός σου, ὕπαγε ἔλεγξον αὐτὸν µεταξὺ σοῦ καὶ αὐτοῦ µόνου. ἐάν σου ἀκούσῃ, ἐκέρδησας τὸν ἀδελφόν σου·

Mas se o seu irmão pecar contra você, vá e mostre-lhe o erro a sós. Se ele te ouvir, você ganhou o teu irmão.

A primeira pergunta que surge a essa altura é a seguinte: de que tipo de disciplina Jesus está ensinando aos seus discípulos? Será que é algo meramente punitivo? Ou há um objetivo claro de uma restauração?

Jesus dirige-se de maneira direta aos seus discípulos. O uso de ἀδελφός indica que Jesus ainda está expondo acerca da questão relacional dentro do seu Reino seguindo a seqüência do capítulo 18. Diante de um caso onde um irmão ofende o outro, quem é o agente primário dessa disciplina? Dependendo da presença ou não da expressão εἰς σὲ (contra ti), podemos ter o sentido de que o próprio ofendido vai ao encontro do ofendedor (nesse sentido vão a NVI, ARA e ARC, que pressupõe a presença de εἰς σὲ no texto), ou de que qualquer um que tenha ciência da culpa do outro vá ao encontro do ofendedor para conversar com ele, instruindo (nesse sentido, BJ e Rienecker ressaltam a ausência de εἰς σὲ nos melhores manuscritos).

O uso do verbo ἐλέγνω, palavra que no Evangelho de Mateus ocorre somente aqui, sugere que o ato de “trazer à tona” e de “expor” a ofensa, o pecado do irmão, e tem como objetivo não apenas o simples fato de mostrar-lhe o erro, mas também de conduzir o “ofendedor” ao arrependimento.  Segundo Carson, é um exercício de convencimento. Como Buchsel aponta, uma “disciplina educativa” (3). Esse processo pedagógico, que já era uma prática dentro da tradição da Torá (cf. Lv 19:17), começa no encontro a sós entre o ofendedor e o ofendido. Essa atitude tempestiva e direta pouparia a difusão desnecessária desse conflito no conhecimento de toda a comunidade (4): é o primeiro passo apresentado por Jesus. Se essa primeira etapa fosse bem sucedida, ou seja, se o ofendido pudesse convencer o ofendedor de seus erros e conduzi-lo ao arrependimento, ele ganharia esse irmão, ou seja, o ofendedor seria restaurado, tanto em termos relacionais, como também diante de Deus, pois esse pecado ser-lhe-ia perdoado.

16 ἐὰν δὲ µὴ ἀκούσῃ, παράλαβε µετὰ σοῦ ἔτι ἕνα ἢ δύο, ἵνα ἐπὶ στόµατος δύο µαρτύρων ἢ τριῶν σταθῇ πᾶν ῥῆµα·

Mas se ele não te ouvir, leve com você uma ou duas pessoas, para que pela  boca de duas ou três testemunhas se confirme toda palavra (acusação).

Jesus leva em consideração a hipótese da primeira etapa pode não ter êxito. Nesse momento o problema deixa de ser algo restrito à relação ofendedor-ofendido e passa a envolver as figuras das testemunhas (membros da comunidade, líderes). O uso jurídico dessas figuras já era garantida na Torá. Mateus faz uma citação resumida de Dt 17:6:

 Mt 18:16: “ (…) ἵνα ἐπὶ στόµατος δύο µαρτύρων ἢ τριῶν σταθῇ πᾶν ῥῆµα”.

Dt 19:15 (LXX): “(…) ἐπὶ στόματος δύο μαρτύρων καὶ ἐπὶ στόματος τρίῶν μαρτύρων σταθέσεται πᾶν ῥῆμα”.

Aquilo que Deuteronônimo enxerga como um caso de resolução de conflitos interpessoais dentro do mundo secular normal não necessariamente religioso, Jesus estabelece como um procedimento para dentro de sua própria comunidade de seguidores (5).

De acordo com Rienecker, “a recomendação de incluir uma ou duas testemunhas não apenas deve aumentar a autoridade da advertência, mas também deve servir para esclarecer os fatos que a pessoa eventualmente negue ou distorça” (6). O apelo implícito é para que o ofendido e essas testemunhas possam, mais uma vez, persuadir o ofendedor a analisar seu erro e, por fim, conduzir o ofendedor ao arrependendimento, para que a sua condição dentro da comunidade do Reino seja restabelecida.

17 ἐὰν δὲ παρακούσῃ αὐτῶν, εἰπὲ τῇ ἐκκλησίᾳ· ἐὰν δὲ καὶ τῆς ἐκκλησίας παρακούσῃ, ἔστω σοι ὥσπερ ὁ ἐθνικὸς καὶ ὁ τελώνης.

Mas se ele recusar-se a ouvi-los, conte isso à igreja. Mas se ele também não ouvir à igreja, considere-o como gentio e publicano.

A última instância, para o caso que nem a presença persuasiva das testemunhas tenha surtido efeito, é a comunidade inteira. O uso do verbo παρακοῦω indica uma forte resistência proposital em não dar ouvidos aos apelos persuasivos dos envolvidos. A esse ponto, só resta levar o caso ao conhecimento da ἐκκλησία, “a igreja local” (7). A comunidade então assumiria o papel último a tentar convencer o ofendedor a respeito dos seus pecados tendo em vista o seu arrependimento.

Jesus leva o caso até as últimas conseqüências: e se mesmo assim, o irmão-ofendedor recusar-se a dar atenção à disciplina da comunidade? A única saída é o seu ostracismo, ou seja, quando a comunidade não mais considera-o como irmão, mas como gentio e publicano (ὁ ἐθνικὸς καὶ ὁ τελώνης). Essas duas classes eram alvo do ostracismo velado e explícito dos  judeus. De acordo com Hagner, o ostracismo não é apenas um ato de expeli-lo da comunidade, mas também de categoriza-lo como “gente da pior espécie” (8). Entretanto, essa excomungação não tem o objetivo na destruição derradeira da pessoa, bem como sua condenação peremptória. A chance do arrependimento continua, uma vez que Jesus também  buscou os gentios e publicanos conduzindo-os ao arrependimento (o caso do próprio Mateus que é autor desse Evangelho).

Entretanto, Carson apresenta uma visão diferente. Para ele, “é uma exegese pobre considerar que essas pessoas sejam tratadas compassivamente. O argumento e os paralelos no Novo Testamento (Rm 16:17, 2Ts 3:14) indicam que Jesus tinha a excomungação em mente” (9).

18 Ἀµὴν λέγω ὑµῖν, ὅσα ἐὰν δήσητε ἐπὶ τῆς γῆς ἔσται δεδεµένα ἐν οὐρανῷ καὶ ὅσα ἐὰν λύσητε ἐπὶ τῆς γῆς ἔσται λελυµένα ἐν οὐρανῷ.

Digo-lhes a verdade: Tudo o que vocês ligarem na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que vocês desligarem na terra terá sido desligado nos céu.

É a segunda vez que Mateus usa a terminologia “ligar” e “desligar”. Em 16:19, Mateus relata a fala de Jesus dirigida a Pedro: “Eu lhes darei as chaves do Reino dos céus; o que você ligar na terra terá sido ligado nos céus, e o que você desligar na terra terá sido desligado nos céus”. Entretanto esse poder é conferido à comunidade no que tange a “disciplina na igreja” (10) desde que essa comunidade faça valer a presença de Cristo em seu meio, obedecendo-O e submetendo-se à Sua Vontade.

Embora os verbos no perfeito δεδεµένα e λελυµένα possam ser traduzidos como “será desligado… será ligado” tal tradução incorreria no erro de conferir à comunidade um poder muito maior do que ela fato tenha. Assim, a tradução no futuro do pretérito no português da NVI “terá sido desligado… terá sido ligado” faz mais sentido, estabelecendo a vontade divina à priore da decisão da igreja. Ao ligarmos aqui na terra, de acordo com Kirschner (14), estaremos nos afinando com a soberania de Deus. A comunidade dos cristãos não tem controle sobre a vontade divina.

19Πάλιν [ἀμὴν] (11) λέγω ὑµῖν ὅτι ἐὰν δύο συµφωνήσωσιν ἐξ ὑµῶν ἐπὶ τῆς γῆς περὶ παντὸς πράγµατος οὗ ἐὰν αἰτήσωνται, γενήσεται αὐτοῖς παρὰ τοῦ πατρός µου τοῦ ἐν οὐρανοῖς.

Também (em verdade) digo a vocês: Se dois concordarem sobre qualquer coisa que pedirem isso será feito a vocês pelo meu Pai que está nos céus.

Pelo uso de Πάλιν, Jesus ratifica mais uma vez esse ensinamento. Em se tratando de qualquer assunto (παντὸς πράγµατος), a vontade de Deus é ecoada através do testemunho verdadeiro das testemunhas e também da comunidade. Hagner diz que: “o que os discípulos concordarem na terra em assuntos disciplinares da igreja pode ser considerado como também sendo a vontade dos céus” (12). Claro que isso só se torna realidade, quando essa comunidade está alinhada à soberania divina.

20 οὗ γάρ εἰσιν δύο ἢ τρεῖς συνηγµένοι εἰς τὸ ἐµὸν ὄνοµα, ἐκεῖ εἰµι ἐν µέσῳ αὐτῶν.

Pois onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali eu estarei no meio deles.

Esse versículo deve ser entendido dentro do contexto daquilo que está sendo proposto por Jesus, a saber, a disciplina dentro da comunidade do Reino de Deus, a igreja. Não é uma promessa divina concernente à respostas de orações nem tão pouco sobre a presença de Cristo no culto cristão. Jesus diz enfaticamente que Ele estaria presente no meio de dois ou três que se reunissem para deliberar acerca de assuntos disciplinares, em outras palavras, essas testemunhas e a comunidade estariam sob as ordens de Jesus. A decisão da comunidade é o eco do alinhamento com a vontade divina. Não se trata de uma concessão divina para decisão da comunidade, mas à conformação daquilo que o céu já decidiu por meio do nome de Jesus. A ruptura do céu e a terra provocada pelo pecado é reunida por Jesus também em questões de cunho disciplinar dentro da comunidade, a igreja local.

Hagner salienta, por fim, que essa presença não deve ser entendida como uma presença metafórica, mas da presença real do Cristo ressurreto. Essa “presença” encontra paralelo com os ensinamentos rabínicos que diziam que a “shekinah” de Deus estaria presente quando dois se reunissem para estudar a Torá (13). Jesus é a presença de Deus real no meio de Sua comunidade em todos os momentos, até para esse mais desagradáveis relacionados à disciplina de um irmão.

Conclusão

A comunidade de Jesus deve lidar com a questão da disciplina de maneira a replicar dentro de si a vontade de Deus que deve ser estabelecida na terra assim como é nos céus. A presença de Jesus no meio da decisão da comunidade, particularmente acerca da disciplina, é o elo de ligação entre a realidade espiritual-celestial e a terreno-física. A questão de ligar na terra não deve ser compreendido como um ato inicial, mas sim, de uma resposta àquilo que já foi estabelecido nos céus como vontade divina. À luz disso, não temos base, de acordo com o texto, de reivindicarmos nada diante de Deus com o pretexto de “termos ligado essa nossa vontade na terra para que seja ligada nos céus”: o que o texto sugere é exatamente o oposto.

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Notas Bibliográficas

RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Comentário Esperança. Esperança, Curitiba, 1998, pág. 317.

2 Cf. Metzger, o uso de εἰς σὲ pode ser uma interpolação ao texto original feito pelos copistas em virtude do uso de εἰς ἐμέ  no vr. 21. Há também manuscritos que omitem a expressão. Vide in METZGER, Bruce M., A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2a. Edição, Deutsche Bibelgesellschaft e UBS, Sttutgart, 2007, pág. 36. Manuscritos importantes como o Vaticano (B) e o Sinaítico (א) omitem εἰς σὲ. Vide in RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Comentário Esperança. Esperança, Curitiba, 1998, pág. 317.

3 Cf. TDNT, verbete ἐλέγνω.

4 HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 531.

5 CARSON, D. A., Matthew, Mark, Luke. The Expositor’s Bible Commentary, Vl. 8, Zondervan, Michigan, 2006, pág. 402.

6 RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Comentário Esperança. Esperança, Curitiba, 1998, pág. 317.

7 HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 532.

8 Ibid. pág. 532

9 CARSON, D. A., Matthew, Mark, Luke. The Expositor’s Bible Commentary, Vl. 8, Zondervan, Michigan, 2006, pág. 402.

10  HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 532.

11 A versão da UBS e a Nestle-Alland acrescentam ἀμὴν precedido do λέγω. Cf. Metzger, não há consenso no uso ou não. Alguns manuscritos a suprimiram considerando redundante devido uso no versículo anterior. Vide in METZGER, Bruce M., A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2a. Edição, Deutsche Bibelgesellschaft e UBS, Sttutgart, 2007, pág. 37

12 HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 533.

13 Ibid, pág. 533. Também in TASKER, R. V. G., Mateus. Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica, Vida Nova, São Paulo, 2008, pág. 141.

14 Kirschner, Estevam. Anotações de aula.