Bíblia – Being Christian, parte 2

A Bíblia é um livro mais ouvido do que lido”. Williams começa o capítulo de uma forma pouco usual. Geralmente, imaginamos nossa relação com a Bíblia em termos de uma leitura solitária, apenas uma leitura. Mas ao longo desses dois milênios de história da Igreja, as pessoas mais ouviram do que leram as Sagradas Escrituras. Mesmo hoje, de acordo com o autor, a posse física de uma Bíblia é um privilégio que milhões de cristãos ao redor do mundo não tem. Esses cristãos que não tem consigo o livro físico, memorizam e recitam os textos bíblicos. A chamada transmissão oral não é algo meramente de um passado longínquo. É uma realidade que ainda temos no mundo.

Bíblia

Ouvir é importante! A vida cristã é a vida do escutar, escutar a Palavra de Deus: “a Bíblia é o território no qual os cristãos devem ouvir Deus falando” (pg. 23). Quando lemos as Escrituras, ouvimos histórias, leis, poemas, profecias das quais temos de escutar e a partir delas ouvir a voz de Deus. Imagine Jesus, por exemplo, contando uma parábola. Jesus espera que ao ouvirmos sua estória possamos nos perguntar “onde estamos nisso tudo?” e “quem somos?”. “Você não pode tirar suas conclusões enquanto a estória está sendo contada” (pg. 27). Entretanto, isso não quer dizer que todas as nossas respostas e atitudes em reação à Bíblia serão boas, mas nos tornamos capazes de, à luz da Palavra em si como um todo, de responder de maneira mais amorosa e fiel aos propósitos divinos.

O grande chamado desse capítulo é: “ouça TODA a História!”. Williams ressalta que não podemos cair na tentação de pegar apenas uma parte da narrativa bíblica e torná-la um modelo para o nosso próprio comportamento (cf. pg. 29). Precisamos, sim, nos atentar a como as pessoas reagiram diante da grande História de Deus, que não é apenas a de Noé ou de Abraão, mas é também a nossa.

Williams é muito conciso ao lidar com a questão da interpretação da Bíblia. Ele cita a grande disputa teológica entre aqueles que a lêem com um óculos mais literal e os que defendem uma abordagem mais liberal. O autor diz “a Bíblia não pretende ser uma mera crônica de eventos passados, mas uma comunicação viva da parte de Deus, dizendo-nos, agora, o que precisamos saber para a nossa salvação” (pg. 33). Assim, não podemos ser nem obsessivos em relação à literalidade do texto e nem tão pouco liberais. Temos que levar a sério a História de Deus.

Devemos ouvir a História, História essa que converge em Jesus. Williams defende uma leitura cristocêntrica da Bíblia. Nesse sentido, “ler a Bíblia é escutar a Deus em Jesus” (pg. 36), é escutar o Espírito Santo trazendo a história dos antigos israelitas, dos primeiros cristãos, tornando essa grande história também a nossa em Cristo.

Um ponto bem pertinente abordado pelo autor, e muitas vezes negligenciado no contexto evangélico, é a questão da tradição. De acordo com Williams, não podemos ler a Bíblia de forma isolada, individualizada. A leitura Bíblica também é um exercício a ser feito em comunidade. Numa sociedade extremamente individualista, vale a pena o resgate desse aspecto comunitário. Lemos o texto junto com os milhares de cristãos que vieram ao mundo antes de nós, que cada qual seu contexto, tentou traduzir em teologia, e em prática a mesma palavra de Deus. A tradição não pode ser um cabresto, mas também não pode ser deixada de lado. O grande perigo do excessivo desapego que temos em relação às tradições históricas é que corremos o risco de pensarmos que “inventamos a roda” ou que “descobrimos uma nova relevação divina”. A alguns dias, vi um video do Dr. Ben Witherinton III falando sobre o dispensacionalismo (http://www.youtube.com/watch?v=d_cVXdr8mVs). Ele questiona exatamente esse ponto: será que essa leitura é a mais adequada? Por que ninguém, em dois mil anos de história interpretou os textos bíblicos dessa maneira? Será que Deus deixou guardado para o século XX uma grande revelação-inovação hermenêutica? Particularmente, acho isso muito pouco provável.

Embora seja um capítulo curto, Rowan Williams acertou na mosca em sua abordagem. Precisamos voltar a “ouvir” a História de Deus, de maneira completa, de forma humilde, em comunidade, para que a partir dessa História, cujo epicentro é Cristo, possamos viver conforme a vontade de Deus.

Batismo – Being Christian, parte 1

Being Christian. Baptism, Bible, Eucharist, Prayer por Rowan Williams, 2014, 84 páginas.

Being Christian

Na sua opinião, quais são as marcas distintivas dos cristãos? Quais são os elementos que sinalizam que uma pessoa pertence à comunidade cristã? Essa é a resposta que Rowan Williams, ex-arcebispo da Cantuária (bispo primaz da Comunhão Anglicana), tenta responder nesse pequeno, mas profundo livro: Batismo, Bíblia, Eucaristia e Oração.

Nessa série de 4 posts quero trazer alguns insights importantes desse livro refletindo sobre a importância que esses quatro “elementos” realmente tem na nossa vida em comunidade. Hoje vamos começar com o batismo.

O Batismo é o ritual de iniciação ao Cristianismo. Pelo batismo, damos o nosso testemunho verbal e prático da graça de Deus em nossas vidas por meio de Jesus Cristo. É por meio dela também que somos “oficialmente” aceitos como membros de uma comunidade local. Entretanto, nós sentimos muito pouco, para não dizer nada, dos efeitos do batismo no nosso dia-a-dia com Deus. Quando nos reunimos em nossas celebrações, quantas sãos as pessoas que se quer lembram que são batizadas?

O autor nos lembra de duas narrativas: primeiro o episódio do batismo (Mt 3:13~17), e em seguida, a narrativa da criação do mundo (particularmente Gn 1:1,2). Você já parou para pensar na semelhança desses dois relatos? Quais são os seus elementos em comum? Água, a voz de Deus e o Espírito Santo. Da mesma maneira que o Espírito pairava sobre a face das águas, esse mesmo Espírito tem papel fundamental na nossa re-criação em Cristo. É a ação de Deus sobre o caos, ordenando e dando sentido novo à vida. Nesse sentido, somos chamados a também desempenharmos a mesma função, vivendo, nas palavras do autor, “na vizinhança do caos”, ao lado daqueles necessitados, indefesos, oprimidos, sendo instrumento de suas restaurações e re-criações.

Para Williams, o batismo tem a ver com o sentido que a própria palavra tem no seu contexto original: imersão, profundidade, “ser mergulhado”. Literalmente, somos mergulhados nas águas batismais, ou, em algumas tradições, aspergidos. Mas o batismo não se esgota apenas no seu ritual. O batismo nos traz o seguinte questionamento: para quê somos recriados? Para vivermos a profundidade da experiência da morte e da ressurreição de Cristo, para vivermos a profundidade da verdadeira humanidade criada para amar a Deus. Viver a profundidade das nossas próprias limitações: “a pessoa batizada não se encontra apenas no meio do sofrimento humano e da lama, mas também no meio do amor e do deleite do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (pg. 7).

Dentro dessa dinâmica da profundidade, o Dr. Williams diz que a oração é a consequência natural daqueles que vivem essa profundidade. Na contramão do senso comum evangélico, a oração não é para o nosso bem-estar, não pode ser mensurada por seus resultados, “mas é o que Deus faz em você quando você está perto de Jesus” (pg. 9). Batismo e oração, você já fez essa correlação?

Rowan Williams foi muito feliz na sua abordagem comunitária do batismo. Além de não ser apenas um ritual, o batismo é a síntese do modo como o verdadeiro cristão deve viver: não apenas na dimensão vertical da fé, ou egoísta da fé (se é que isso pode existir), mas também desfrutando do relacionamento que temos com outros batizados, e também a todo o mundo, afinal, Deus ama a todos. Da mesma forma que fomos recriados, somos também porta-voz dessa recriação àqueles que vivem no caos. O batizado carrega em si um “ministério” profético no sentido de ser a voz de Deus na manutenção da integridade da comunidade. A voz crítica e questionadora que leva as pessoas sempre a pensarem se estão ou não dentro do caminho, do jeito-de-ser-e-viver cristão. O batizado também tem em si um caráter sacerdotal: fomos batizados para fazer o meio-de-campo entre Deus e o mundo, criando pontes, restaurando, reconectando o mundo com o seu Criador. Por último, o batizado é chamado a exercer a sua função real, ou seja, o engajamento para que a justiça e a liberdade se Deus se façam visíveis nesse mundo.

Batismo de Jesus

Ser batizado, não significa ter um status de um “intocável” ou até de “imaculado”. Dr. Williams é categórico: “somos batizados, mas ainda sim pecadores”. Como lidar com essas duas realidades? Contanto que não pequemos de maneira delibera (em clara rebeldia contra Deus), podemos nos arrepender em oração e sermos levados novamente por meio do perdão de volta ao caminho original, ouvindo de Deus a voz: “Você é meu filho amado”.  “A comunidade batizada vive nesse mistério: tirado do caos, respirando o vento do Espírito e ouvindo de Deus as palavras que Ele disse ao seu Filho Unigênito, ‘Você pode me chamar de Pai’ ” (pg. 18).

Vamos viver a plenitude do nosso batismo?

Quando 2 ou 3 estiverem reunidos em meu nome…. para que mesmo? “Rápida” exegese de Mt 18:15~20

Introdução

Quem já não ouviu falar, geralmente dos nossos pregadores, que “Deus está presente onde estiverem pelo menos dois ou três reunidos”? Já escutei muito essa frase dita, principalmente, quando está faltando gente para começar o culto (fazendo uma mea culpa , talvez eu já tenha me utilizado dessa frase também). Esse é um daqueles textos mal-interpretados que, quando paramos para ler com atenção, o seu sentido muda completamente daquilo que estamos acostumados a entender. Será que o texto está falando da presença de Deus em meio à reunião dos irmãos simplesmente, ou há algo a mais?

E aquele versículo que diz que supostamente “Deus concederia tudo que fosse ligado por nós aqui na terra”? Será que isso abre espaço, para que, de acordo com alguns, possamos exercer nosso poder como filhos exigindo alguma demanda junto ao Pai? Certamente já ouvi muita coisa assim… Vamos fazer uma viagem pela primeira parte do capítulo 18, explorando o contexto e aprofundando na análise do texto propriamente dito para ver se realmente esses pressupostos tidos como “verdadeiros” são de fato plausíveis de acordo com um exame mais minucioso desse texto.

Esse pequeno “comentário” é fruto de um clube “clandestino” de exegese!! (risos!!). Aos meus irmãos clandestinos, dedico esse texto!

Contexto

No capítulo 18, Mateus nos relata uma série de discursos de Jesus acerca do tratamento interpessoal dentro da comunidade dos discípulos, ou em sentido mais estrito e atual, dentro da comunidade local dos irmãos. Nessa comunidade, as lógicas empregadas do mundo são totalmente invertidas: o maior é o considerado menor e o perdão é a solução definitiva para todos os conflitos interpessoais que podem ocorrer dentro desse povo de Deus.

Dos versículos 1 a 6, vemos Jesus responder à pergunta levantada pelos próprios discípulos: “Quem é o maior no Reino dos Céus?” (Mt 18:1b). Jesus coloca uma criança no meio deles e diz que aquele que se torna humilde como a criança entrará no Reino. É interessante que Jesus não responde diretamente à pergunta dos seus discípulos. Antes, ele expõe um modelo de “práxis relacional”: quando recebemos esses “pequeninos”, nos tornamos humildes habilitados à entrada no Reino. Entretanto, para quem faz tropeçar esses “pequeninos”, o destino é o “fogo eterno”.

Em seguida, Jesus conta uma das suas mais famosas parábolas: a Ovelha Perdida, mostrando aos seus discípulos que mesmo Deus, o Pai, se importa até mesmo com o “pequenino” perdido para trazê-lo de volta ao convívio dos demais, deixando, momentaneamente as suas 99 ovelhas: “o Pai de vocês, que está nos céus, não quer que nenhum destes pequeninos se perca” (Mt 18:14).

O trecho dos versículos 15~20 é de suma importância pois apresenta, de maneira prática, como a comunidade dos discípulos deve tratar um “irmão” que tenha ofendido, ou pecado, contra alguém da própria comunidade. A grande preocupação do texto está no processo de convencimento dentro da qual o “ofendedor” é posto, a fim de que entenda a sua situação de falta com o irmão e com Deus. Toda a tradição testemunhal da Torá é trazida: da conversa particular até a persuasão pública, diante da comunidade. Entretanto, como há sempre a possibilidade do pecador não se arrepender, Jesus ensina os seus discípulos a questão do ostracismo disciplinar (cf. vr. 17). Rienecker ressalta que esse trecho nos apresenta “as instâncias corretas que devemos percorrer na comunidade” (1) quando o assunto é disciplina.

Qual é o poder que a comunidade do Reino, dos discípulos de Jesus detêm? A decisão dessa comunidade  deve refletir a vontade de Jesus. Dentro dessa análise, um discípulo de Cristo nunca é concebido fora de sua própria comunidade. Essa comunidade que tem o “poder” de perdoá-lo diante da manifestação de arrependimento, ou de condena-lo a algum tipo de ostracismo. A comunidade onde Cristo se faz presente e onde sua vontade é refletida no julgamento dessa comunidade é o padrão desejável para as deliberações sobre assuntos tão incômodos como a eventual punição de alguém pertencente ao próprio grupo de irmãos.

É a partir desse ponto que Mateus relata a parábola do Servo Impiedoso, uma estória contada por Jesus diante do questionamento de Pedro: “Até quantas vezes devemos perdoar o irmão”. Embora o Servo Impiedoso tenha sido perdoado pelo rei de uma grande dívida, não teve a capacidade de transmitir a mesma graça a um conhecido que devia infinitamente menos do que a sua própria dívida. Se o relato prático dos vrs. 15~20 trata de um “ofendedor” impenitente, a parábola do Servo Impiedoso expõe a outra faceta da moeda, onde o “ofendido” não tem a capacidade de perdoar o “ofendedor”.

Basicamente, no capítulo 18 de Mateus temos vários ensinamentos de Jesus a respeito da vida comunitária e de como o pecado deve ser lidado dentro desse grupo. É dentro desse conceito que vamos explorar mais os versículos 15~20, com a questão da presença de Jesus no meio de “dois ou três”.

Análise do texto grego.

15 Ἐὰν δὲ ἁµαρτήσῃ [εἰς σὲ] (2) ὁ ἀδελφός σου, ὕπαγε ἔλεγξον αὐτὸν µεταξὺ σοῦ καὶ αὐτοῦ µόνου. ἐάν σου ἀκούσῃ, ἐκέρδησας τὸν ἀδελφόν σου·

Mas se o seu irmão pecar contra você, vá e mostre-lhe o erro a sós. Se ele te ouvir, você ganhou o teu irmão.

A primeira pergunta que surge a essa altura é a seguinte: de que tipo de disciplina Jesus está ensinando aos seus discípulos? Será que é algo meramente punitivo? Ou há um objetivo claro de uma restauração?

Jesus dirige-se de maneira direta aos seus discípulos. O uso de ἀδελφός indica que Jesus ainda está expondo acerca da questão relacional dentro do seu Reino seguindo a seqüência do capítulo 18. Diante de um caso onde um irmão ofende o outro, quem é o agente primário dessa disciplina? Dependendo da presença ou não da expressão εἰς σὲ (contra ti), podemos ter o sentido de que o próprio ofendido vai ao encontro do ofendedor (nesse sentido vão a NVI, ARA e ARC, que pressupõe a presença de εἰς σὲ no texto), ou de que qualquer um que tenha ciência da culpa do outro vá ao encontro do ofendedor para conversar com ele, instruindo (nesse sentido, BJ e Rienecker ressaltam a ausência de εἰς σὲ nos melhores manuscritos).

O uso do verbo ἐλέγνω, palavra que no Evangelho de Mateus ocorre somente aqui, sugere que o ato de “trazer à tona” e de “expor” a ofensa, o pecado do irmão, e tem como objetivo não apenas o simples fato de mostrar-lhe o erro, mas também de conduzir o “ofendedor” ao arrependimento.  Segundo Carson, é um exercício de convencimento. Como Buchsel aponta, uma “disciplina educativa” (3). Esse processo pedagógico, que já era uma prática dentro da tradição da Torá (cf. Lv 19:17), começa no encontro a sós entre o ofendedor e o ofendido. Essa atitude tempestiva e direta pouparia a difusão desnecessária desse conflito no conhecimento de toda a comunidade (4): é o primeiro passo apresentado por Jesus. Se essa primeira etapa fosse bem sucedida, ou seja, se o ofendido pudesse convencer o ofendedor de seus erros e conduzi-lo ao arrependimento, ele ganharia esse irmão, ou seja, o ofendedor seria restaurado, tanto em termos relacionais, como também diante de Deus, pois esse pecado ser-lhe-ia perdoado.

16 ἐὰν δὲ µὴ ἀκούσῃ, παράλαβε µετὰ σοῦ ἔτι ἕνα ἢ δύο, ἵνα ἐπὶ στόµατος δύο µαρτύρων ἢ τριῶν σταθῇ πᾶν ῥῆµα·

Mas se ele não te ouvir, leve com você uma ou duas pessoas, para que pela  boca de duas ou três testemunhas se confirme toda palavra (acusação).

Jesus leva em consideração a hipótese da primeira etapa pode não ter êxito. Nesse momento o problema deixa de ser algo restrito à relação ofendedor-ofendido e passa a envolver as figuras das testemunhas (membros da comunidade, líderes). O uso jurídico dessas figuras já era garantida na Torá. Mateus faz uma citação resumida de Dt 17:6:

 Mt 18:16: “ (…) ἵνα ἐπὶ στόµατος δύο µαρτύρων ἢ τριῶν σταθῇ πᾶν ῥῆµα”.

Dt 19:15 (LXX): “(…) ἐπὶ στόματος δύο μαρτύρων καὶ ἐπὶ στόματος τρίῶν μαρτύρων σταθέσεται πᾶν ῥῆμα”.

Aquilo que Deuteronônimo enxerga como um caso de resolução de conflitos interpessoais dentro do mundo secular normal não necessariamente religioso, Jesus estabelece como um procedimento para dentro de sua própria comunidade de seguidores (5).

De acordo com Rienecker, “a recomendação de incluir uma ou duas testemunhas não apenas deve aumentar a autoridade da advertência, mas também deve servir para esclarecer os fatos que a pessoa eventualmente negue ou distorça” (6). O apelo implícito é para que o ofendido e essas testemunhas possam, mais uma vez, persuadir o ofendedor a analisar seu erro e, por fim, conduzir o ofendedor ao arrependendimento, para que a sua condição dentro da comunidade do Reino seja restabelecida.

17 ἐὰν δὲ παρακούσῃ αὐτῶν, εἰπὲ τῇ ἐκκλησίᾳ· ἐὰν δὲ καὶ τῆς ἐκκλησίας παρακούσῃ, ἔστω σοι ὥσπερ ὁ ἐθνικὸς καὶ ὁ τελώνης.

Mas se ele recusar-se a ouvi-los, conte isso à igreja. Mas se ele também não ouvir à igreja, considere-o como gentio e publicano.

A última instância, para o caso que nem a presença persuasiva das testemunhas tenha surtido efeito, é a comunidade inteira. O uso do verbo παρακοῦω indica uma forte resistência proposital em não dar ouvidos aos apelos persuasivos dos envolvidos. A esse ponto, só resta levar o caso ao conhecimento da ἐκκλησία, “a igreja local” (7). A comunidade então assumiria o papel último a tentar convencer o ofendedor a respeito dos seus pecados tendo em vista o seu arrependimento.

Jesus leva o caso até as últimas conseqüências: e se mesmo assim, o irmão-ofendedor recusar-se a dar atenção à disciplina da comunidade? A única saída é o seu ostracismo, ou seja, quando a comunidade não mais considera-o como irmão, mas como gentio e publicano (ὁ ἐθνικὸς καὶ ὁ τελώνης). Essas duas classes eram alvo do ostracismo velado e explícito dos  judeus. De acordo com Hagner, o ostracismo não é apenas um ato de expeli-lo da comunidade, mas também de categoriza-lo como “gente da pior espécie” (8). Entretanto, essa excomungação não tem o objetivo na destruição derradeira da pessoa, bem como sua condenação peremptória. A chance do arrependimento continua, uma vez que Jesus também  buscou os gentios e publicanos conduzindo-os ao arrependimento (o caso do próprio Mateus que é autor desse Evangelho).

Entretanto, Carson apresenta uma visão diferente. Para ele, “é uma exegese pobre considerar que essas pessoas sejam tratadas compassivamente. O argumento e os paralelos no Novo Testamento (Rm 16:17, 2Ts 3:14) indicam que Jesus tinha a excomungação em mente” (9).

18 Ἀµὴν λέγω ὑµῖν, ὅσα ἐὰν δήσητε ἐπὶ τῆς γῆς ἔσται δεδεµένα ἐν οὐρανῷ καὶ ὅσα ἐὰν λύσητε ἐπὶ τῆς γῆς ἔσται λελυµένα ἐν οὐρανῷ.

Digo-lhes a verdade: Tudo o que vocês ligarem na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que vocês desligarem na terra terá sido desligado nos céu.

É a segunda vez que Mateus usa a terminologia “ligar” e “desligar”. Em 16:19, Mateus relata a fala de Jesus dirigida a Pedro: “Eu lhes darei as chaves do Reino dos céus; o que você ligar na terra terá sido ligado nos céus, e o que você desligar na terra terá sido desligado nos céus”. Entretanto esse poder é conferido à comunidade no que tange a “disciplina na igreja” (10) desde que essa comunidade faça valer a presença de Cristo em seu meio, obedecendo-O e submetendo-se à Sua Vontade.

Embora os verbos no perfeito δεδεµένα e λελυµένα possam ser traduzidos como “será desligado… será ligado” tal tradução incorreria no erro de conferir à comunidade um poder muito maior do que ela fato tenha. Assim, a tradução no futuro do pretérito no português da NVI “terá sido desligado… terá sido ligado” faz mais sentido, estabelecendo a vontade divina à priore da decisão da igreja. Ao ligarmos aqui na terra, de acordo com Kirschner (14), estaremos nos afinando com a soberania de Deus. A comunidade dos cristãos não tem controle sobre a vontade divina.

19Πάλιν [ἀμὴν] (11) λέγω ὑµῖν ὅτι ἐὰν δύο συµφωνήσωσιν ἐξ ὑµῶν ἐπὶ τῆς γῆς περὶ παντὸς πράγµατος οὗ ἐὰν αἰτήσωνται, γενήσεται αὐτοῖς παρὰ τοῦ πατρός µου τοῦ ἐν οὐρανοῖς.

Também (em verdade) digo a vocês: Se dois concordarem sobre qualquer coisa que pedirem isso será feito a vocês pelo meu Pai que está nos céus.

Pelo uso de Πάλιν, Jesus ratifica mais uma vez esse ensinamento. Em se tratando de qualquer assunto (παντὸς πράγµατος), a vontade de Deus é ecoada através do testemunho verdadeiro das testemunhas e também da comunidade. Hagner diz que: “o que os discípulos concordarem na terra em assuntos disciplinares da igreja pode ser considerado como também sendo a vontade dos céus” (12). Claro que isso só se torna realidade, quando essa comunidade está alinhada à soberania divina.

20 οὗ γάρ εἰσιν δύο ἢ τρεῖς συνηγµένοι εἰς τὸ ἐµὸν ὄνοµα, ἐκεῖ εἰµι ἐν µέσῳ αὐτῶν.

Pois onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali eu estarei no meio deles.

Esse versículo deve ser entendido dentro do contexto daquilo que está sendo proposto por Jesus, a saber, a disciplina dentro da comunidade do Reino de Deus, a igreja. Não é uma promessa divina concernente à respostas de orações nem tão pouco sobre a presença de Cristo no culto cristão. Jesus diz enfaticamente que Ele estaria presente no meio de dois ou três que se reunissem para deliberar acerca de assuntos disciplinares, em outras palavras, essas testemunhas e a comunidade estariam sob as ordens de Jesus. A decisão da comunidade é o eco do alinhamento com a vontade divina. Não se trata de uma concessão divina para decisão da comunidade, mas à conformação daquilo que o céu já decidiu por meio do nome de Jesus. A ruptura do céu e a terra provocada pelo pecado é reunida por Jesus também em questões de cunho disciplinar dentro da comunidade, a igreja local.

Hagner salienta, por fim, que essa presença não deve ser entendida como uma presença metafórica, mas da presença real do Cristo ressurreto. Essa “presença” encontra paralelo com os ensinamentos rabínicos que diziam que a “shekinah” de Deus estaria presente quando dois se reunissem para estudar a Torá (13). Jesus é a presença de Deus real no meio de Sua comunidade em todos os momentos, até para esse mais desagradáveis relacionados à disciplina de um irmão.

Conclusão

A comunidade de Jesus deve lidar com a questão da disciplina de maneira a replicar dentro de si a vontade de Deus que deve ser estabelecida na terra assim como é nos céus. A presença de Jesus no meio da decisão da comunidade, particularmente acerca da disciplina, é o elo de ligação entre a realidade espiritual-celestial e a terreno-física. A questão de ligar na terra não deve ser compreendido como um ato inicial, mas sim, de uma resposta àquilo que já foi estabelecido nos céus como vontade divina. À luz disso, não temos base, de acordo com o texto, de reivindicarmos nada diante de Deus com o pretexto de “termos ligado essa nossa vontade na terra para que seja ligada nos céus”: o que o texto sugere é exatamente o oposto.

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Notas Bibliográficas

RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Comentário Esperança. Esperança, Curitiba, 1998, pág. 317.

2 Cf. Metzger, o uso de εἰς σὲ pode ser uma interpolação ao texto original feito pelos copistas em virtude do uso de εἰς ἐμέ  no vr. 21. Há também manuscritos que omitem a expressão. Vide in METZGER, Bruce M., A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2a. Edição, Deutsche Bibelgesellschaft e UBS, Sttutgart, 2007, pág. 36. Manuscritos importantes como o Vaticano (B) e o Sinaítico (א) omitem εἰς σὲ. Vide in RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Comentário Esperança. Esperança, Curitiba, 1998, pág. 317.

3 Cf. TDNT, verbete ἐλέγνω.

4 HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 531.

5 CARSON, D. A., Matthew, Mark, Luke. The Expositor’s Bible Commentary, Vl. 8, Zondervan, Michigan, 2006, pág. 402.

6 RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Comentário Esperança. Esperança, Curitiba, 1998, pág. 317.

7 HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 532.

8 Ibid. pág. 532

9 CARSON, D. A., Matthew, Mark, Luke. The Expositor’s Bible Commentary, Vl. 8, Zondervan, Michigan, 2006, pág. 402.

10  HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 532.

11 A versão da UBS e a Nestle-Alland acrescentam ἀμὴν precedido do λέγω. Cf. Metzger, não há consenso no uso ou não. Alguns manuscritos a suprimiram considerando redundante devido uso no versículo anterior. Vide in METZGER, Bruce M., A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2a. Edição, Deutsche Bibelgesellschaft e UBS, Sttutgart, 2007, pág. 37

12 HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 533.

13 Ibid, pág. 533. Também in TASKER, R. V. G., Mateus. Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica, Vida Nova, São Paulo, 2008, pág. 141.

14 Kirschner, Estevam. Anotações de aula.