A cerimônia de Siquém. Exegese de Dt 27.

O livro de Deuteronômio pode ser entendido, de uma maneira bem sintética, como a ratificação, renovação ou repetição da lei que fora dada aos Israelitas, por intermédio de Moisés, no Sinai. Durante quase todo o livro, o escritor ocupa-se em organizar conceitos como o monoteísmo em YHWH, a eleição dos israelitas como povo de Deus, a atuação e intervenção de Deus na história de seu povo e a ratificação da aliança que fora feita primeiramente com Abraão.

A partir do capítulo 27 do livro, quando entramos no desfecho da obra, encontramos uma cerimônia que deveria ser realizada ao cruzar-se o Rio Jordão. Tal ritual representaria a aliança de Israel com o seu Deus. A maioria dos comentaristas é unânime em dizer que o capítulo 27 possui certas peculiaridades que contribuem com a idéia de que o capítulo 27 possui uma conexão clara com o capítulo anterior e também com o posterior.

A primeira razão para estabelecer essa relação entre esses três capítulo é que Moisés aparece em terceira pessoa. De acordo com Thompson, “esta é a primeira vez, desde 5:1, em que ele é apresentado dessa forma, pois os capítulos 5 a 26 são uns únicos discursos hortatórios de Moisés a Israel”. Outro aspecto é que o foco do escritor deixa de ser Moabe, onde os israelitas estavam acampados na ocasião da ordenança, e passa a ser Siquém, cidade do outro lado do rio Jordão que estava a uma distância de mais um dia de caminhada da onde eles estavam. O terceiro ponto é que a cerimônia descrita nesse capítulo deveria ser feita apenas uma vez (ao entrar na terra prometida)

As razões acima serviram como argumentos para aqueles que supõem  a redação desse livro para além do séc. VII a.C.. Entretanto essa teoria não encontraria base por causa do seguinte aspecto: esse trecho contradiz a lei da centralidade do culto. Uma vez que no séc. VII a.C., o centro religioso já fora estabelecido em Jerusalém, não haveria motivo para que um eventual autor contemporâneo dessa época incluísse uma ordem de erigir um altar no monte Ebal que nem se quer era considerado um lugar santo para os judeus.

Porém, a posição mais aceita pelos estudiosos é de que a inserção da descrição do capítulo 27 se fez necessária para complementar Dt 26:16~19, onde Deus conclama seu povo à obediência às leis estabelecidas por Ele.  Para isso, a cerimônia teria um fator relevante:  ilustraria a aliança de Deus com os israelitas, aos moldes dos antigos tratados de suserania e vassalagem do antigo Oriente Médio. Nesses tipos de aliança, faziam-se votos de bênção para os que cumpriam o pacto e também faziam-se votos de maldição para os que quebravam o acordo. Para Christensen,

 “Importantes exemplos de documentos de aliança e cerimônias tem surgido em grade parte dos tratados internacionais preservados em textos de todo o mundo oriental antigo. Embora esses tratados sejam conhecidos primeiramente através dos hititas, não há razão para se supor que os hititas inventaram essa forma. Esses tratados são intrinsecamente trans-culturais em natureza e certamente influenciaram a estrutura e a natureza da aliança do Sinai e de sua renovação, especialmente como é refletido na cerimônia de aliança apresentado em Deuteronômio 27-30”[1].

Nessa visão, o capítulo 27 seria um fluxo natural do seu capítulo anterior e posterior, onde o povo renovaria seu conhecimento na aliança e nas cláusulas desse contrato. Nessa cerimônia os dois lados se comprometeriam a cumprir com a sua parte, e, posteriormente, se proclamariam as recompensas e sanções devidas ao acordo. Para Thompson, “embora se possa objetar que as bênçãos não se acham aqui incluídas, deve-se notar que não era necessário incluir referencias a todos os aspectos de uma cerimônia pactual sempre que se fazia menção a ela”[2].

Graigie possui uma percepção mais além acerca da importância desse capítulo em Deuteronômio, relacionado com a visão hebraica de História. A renovação da aliança em Moabe teria dois focos: primeiramente, a rememoração da aliança estabelecida por Deus para com seu povo no Monte Horeb; em segundo lugar, a antecipação do futuro, quando novamente a aliança seria ratificada[3], por ocasião da entrada do povo em Canaã. Os fatos ocorridos no passado, como o concerto de Deus com Abraão, os fatos do presente, ou seja, a renovação da aliança em Moabe, e os acontecimentos futuros teriam uma conexão e uma relação muito próxima. Assim, com essa renovação da aliança, Deus daria a certeza ao seu povo de que o acordo feito nos tempos dos antigos patriarcas seria plenamente cumprido quando o povo entrasse, conquistasse a terra prometida e se submetesse à Sua Lei.

A cerimônia em si.

Feitas essas considerações introdutórias, observaremos os detalhes do próprio texto bíblico sobre a descrição da cerimônia da maldição (qelālā) no monte Ebal.

O capítulo inicia-se com a apresentação de Moisés em terceira pessoa e junto com ele aparecem as figuras dos anciãos, ou “autoridades” dos israelitas (NVI). É a primeira vez que vemos a figura desses anciãos junto a Moisés na tarefa de ordenar ao povo a que se obedeça ao que fora estabelecido na lei em Deuteronômio[4]. É razoável pensar que a presença dos anciãos seria um prenúncio claro que Moisés não conduziria o povo na conquista da terra prometida e que parte da responsabilidade da observância do concerto de Deus com os israelitas estaria sobre as essas autoridades. Para alguns estudiosos, como Mayes e.g., o termo “acompanhado das autoridades de Israel” (Dt 27:1) seria uma adição posterior[5].

A travessia do Jordão é o marco temporal da realização do ritual. É improvável pensar que a cerimônia teria de ser a primeira coisa a ser feita pelos Israelitas ao entrarem em Canaã[6]. A razão para essa afirmação seria simples: o monte Ebal fica a 30 milhas, ou seja, aproximadamente 49 km, de Jericó, primeira cidade a ser conquistada na empreitada da conquista da terra de Canaã. Mayes acrescenta que o texto deve ser entendido no sentido de se realizar o ritual logo “após atravessar o Jordão”[7], ou como a NVI traduz, “quando vocês atravessarem o Jordão” (Dt 27:2).

O primeiro passo da cerimônia consistia em erigir algumas pedras grandes onde a lei seria gravada e, a seguir, essas pedras deveriam ser pintadas com cal. Isso tornaria visível a escrita da lei nas pedras que passariam a ter um fundo branco. Para Craigie, o método de preparação dessas pedras é tipicamente egípcio, ao invés de ser palestino ou mesmo mesopotâmico[8]. Essas pedras serviriam não somente como escritas visíveis da tōrāh, mas testemunhas concretas e visíveis da aliança que Deus fizera com seu povo e a conseqüente obrigação dos israelitas em obedecer a esses decretos. Tais pedras deveriam ser erguidas no Monte Ebal, conforme podemos ver em Dt 27:4.

O monte Ebal e Gerizim que ficam na região de Siquém.
O monte Ebal e Gerizim que ficam na região de Siquém.

O Monte Ebal, tanto quanto sua montanha irmã, o monte Gerizim (monte sobre a qual deveriam ser anunciadas as palavras de bênção), estão localizados na região de Siquém, ao leste do Jordão e distante 40 milhas de Jerusalém, cujo significado histórico para os hebreus é muito grande. Lá, por exemplo, Jacó erigiu um altar cujo nome era El Elohe Israel[9] (Gn 33:19) e onde Josué renovaria a aliança em Js 24. O monte Gerizim era considerado sagrado para os samaritanos, isso já no final do Antigo Testamento. Na seqüência, no versículo 8, há a preocupação do escritor em dizer que a lei deveria ser escrita com bastante clareza nas pedras. Literalmente, as letras deveriam ser “cavadas” nas pedras: subjetivamente, seria uma indicação de que a lei deveria ser gravada profundamente não só em pedras, mas também no coração do povo.

Diferente das grandes colunas de pedra caiadas, um outro altar, agora para sacrifícios,  deveria ser preparado conforme as instruções de Êx 20:25: “Se me fizeram um altar de pedras, não o façam com pedras lavradas (šālēm), porque o uso de ferramentas o profanaria”.

Sobre esse altar dois sacrifícios seriam oferecidos: o holocausto e as ofertas pacíficas (sacrifícios de comunhão, shlāmīm)[10]. O holocausto consistia em um sacrifício totalmente (‘ôlâ) queimado a YHWH, enquanto que a oferta de comunhão poderia ser consumida pelo ofertante que deveria se alegrar diante de Deus. Isso indicaria a participação do povo no ritual da aliança. Esses sacrifícios seriam oferecidos em conexão com a cerimônia pactual.

Craigie levanta uma possibilidade para a proibição de uso de ferramenta de ferro para talhar o altar: como a tecnologia do ferro fora desenvolvida pelos filisteus, a utilização do ferro significaria a dependência de dos israelitas em relação a não-hebreus, o que desqualificaria a aliança exclusiva de Javé com o seu povo[11].

Todo esse ritual encontra o seu sentido, o seu raizon d’être, nos versículos 9 e 10. A obediência é tarefa do povo na aliança com YHWH: “obedeça ao Senhor, o seu Deus, e siga os seus mandamentos e decretos que lhes dou hoje” (Dt 27:10). Essa obediência seria a marca do ser o “povo de Deus”, ou seja, no momento em que a aliança é renovada e a identidade dos israelitas reafirmada, a principal tarefa dos filhos de Israel, como povo de Deus, seria a obediência a seu Senhor e Deus.

A partir do versículo 11, podemos ver mais detalhes acerca da cerimônia de renovação da aliança no monte Ebal: “Quando vocês tiverem atravessado o Jordão, as tribos que estarão no monte Gerizim para abençoar o povo serão: Simeão, Levi, Judá, Issacar, José e Benjamim. E as tribos que estarão no monte Ebal para declararem maldições serão: Rúben, Gade, Aser, Zebulom, Dã e Naftali” (Dt 27:12).

De acordo com Craigie, “a divisão das tribos parece se basear nas suas relações maternais com relação ao patriarca Jacó. As tribos descendentes de Lia e Raquel, esposas legitimas de Jacó, representam as bênçãos; e aqueles que descendem de Zilpa e Bila, que junto com Rúben e Zebulon, representam as maldições”[12]. Em outras palavras. Os filhos legítimos representariam a benção e os ilegítimos a maldição. Dessa maneira todo Israel[13] estaria envolvido e participaria na cerimônia da renovação na aliança com o Senhor como testemunho para a obediência[14].

Mas por que o Monte Ebal e Gerizim foram escolhidos para a recitação das maldições e das bênçãos, respectivamente? O Monte Gerizim, ao sul, pode ter simbolizado boa sorte, uma vez que ficava à mão direita de alguém que, naquele lugar, olhasse para o nascente do sol. Em contrapartida, o Monte Ebal significaria a maldição.

De acordo com Js 8:30~35, descrição da realização da cerimônia já na terra prometida, após a vitória sobre Ai, a arca da aliança deveria ficar no meio do vale, junto com os sacerdotes, e os dois grupos de tribos em cada lado. Apesar dos detalhes da cerimônia serem incertos, o significado que ela carrega parece claro. A presença da arca simbolizava a aliança (as tábuas da lei que estavam dentro da arca). Ao recitarem-se as bênçãos e as maldições, pelos dois lados, o povo estava dramatizando e verbalizando as bênçãos que seguiriam aos obedientes e ouvintes à lei, em contrapartida às maldições que alcançariam os que quebrassem as cláusulas do contrato.

Os levitas declararam as maldições, porém, não há registro de que eles tenham proferido as palavras de bênção. Um dos motivos pode ser o apontado por Driver. A relação do homem com a lei seria mais próxima com as maldições decorrentes da desobediência do que das bênçãos resultantes da obediência devido à própria natureza pecaminosa do homem[15].

Craigie nos relata que na interpretação da Mishnah, os levitas de dirigiram palavras de benção às tribos no lado do monte Gerizim e as tribos, ou os representantes das tribos responderam “amém”, da mesma maneira, as seis outras tribos, localizados do lado do monte Ebal responderam “amém” após a declaração das maldições[16]. De acordo com o Talmud, esse “amém” significaria a aceitação e a submissão do povo à aliança e aos termos do acordo[17], ou seja, o povo não teria mais desculpa para qualquer ato de desobediência a Deus.

 O Dodecálogo de maldições.

Os versículos que seguem são conhecidos como “Dodecálogo” ou “Dodecálogo de Siquém”, uma vez que são apresentadas doze leis e suas respectivas maldições. Estas maldições deveriam ser proferidas pelos levitas na ocasião da realização da cerimônia de renovação da aliança, no Monte Ebal, região de Siquém. A liturgia das doze maldições cobre um leque de crimes espirituais, sociais e sexuais semelhantes ao do Decálogo, embora mais abrangente.

Pode-se dizer que essas leis não foram escolhidas de maneira aleatória, pelo contrário, simbolizariam todos os atos que afrontavam diretamente a santidade de Javé. Todas as doze fórmulas são introduzidas pela palavra “maldito” (’arûr) que é contrario à palavra bendito (Baruch).

“Maldito quem esculpir uma imagem ou fizer um ídolo fundido, obra de artesãos, detestável ao Senhor, e levantá-lo secretamente” (Dt 27:15). Esse é a primeira maldição e está relacionada à quebra dos dois primeiros mandamentos (Êx 20:3,4). Moldar ou esculpir uma imagem que seria adorada no lugar, ou acima, de YHWH. Nesse ponto temos a seguinte constatação: a idolatria vai entrar em conflito com a lei que revelara ao povo a face de um Deus único que deveria ser único alvo da adoração de seu povo. Provavelmente, havia pessoas que cultuavam deuses pagãos trazidos do Egito, principalmente no oculto de suas casas. Mesmo que a adoração secreta a deuses estranhos estivesse fora da vista das autoridades, Deus consideraria essa atitude detestável, ou abominável. O pecado de idolatria era um dos, se não for o maior, pecados que a lei previa. Isso era tão sério que Deus ordenou que se matasse até filhos e filhas se preciso fosse (conf. Dt 13:8~10)[18].

“Maldito quem desonrar o seu pai ou a sua mãe” (Dt 27:16). Essa maldição tem relação com o conceito de honra. O desonrar significa literalmente “tornar menor, desprezível”[19], insultar. É a transgressão direta do sexto mandamento (Êx 20:12). Essa norma tem a ver com o seio familiar, que ilustraria a maneira pela qual Deus deveria ser honrado.

“Maldito quem mudar o marco de divisa da propriedade do seu próximo”(Dt 27:17). Essa norma tem um caráter social muito forte. A preservação da propriedade do outro é assegurada por Deus. A mudança de marco que visa a posse irregular de terras alheias para beneficio próprio quebraria um principio de equidade social. Remover marcos representava um pecado contra Deus, uma vez que o homem mudava marcos estabelecidos por Deus por ocasião da divisão da terra prometida entre as tribos, ou seja, “remover os marcos significava intrometer-se em algo que o próprio Deus havia delimitado[20].

“Maldito quem fizer o cego errar o caminho”(Dt 27:18), essa norma indicava que os menos afortunados, os deficientes físicos, representados na figura do cego, tinham um cuidado especial de Deus. Deus proíbe que uma pessoa se aproveite da fraqueza de outrem para tirar proveito pessoal.

“Maldito quem negar justiça ao estrangeiro, ao órfão ou à viúva”(Dt 27:19).  Assim como a figura do cego, Deus, em várias partes da lei, deixa claro um cuidado peculiar com os órfãos e as viúvas. Esses dois tipos de pessoas estavam desprovidos das principais dádivas celestiais: os filhos e os cônjuges. Dt 10:18 diz: “Ele defende a causa do órfão e da viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe alimento e roupa”.

“Maldito quem se deitar com a mulher do seu pai, desonrando a cama de seu pai”(Dt 27:20), “Maldito quem tiver relações sexuais com algum animal”(Dt 27:21), “Maldito quem se deitar com a sua irmã, filha do seu pai ou as sua mãe”(Dt 27:22),“Maldito quem se deitar com a sua sogra”(Dt 27:23). Todos esses mandamentos têm a ver com a questão da pureza sexual. O objetivo de Deus era que seu povo se distinguisse dos demais através de um padrão moral-sexual ordenado por Deus. O incesto e as relações sexuais dentro de uma mesma família são terminantemente proibidos[21]. Da mesma forma, o bestialismo é considerado uma abominação ao Senhor, tanto é que a lei mosaica prevê a morte para os que cometem tal pecado.

“Maldito quem matar secretamente o seu próximo”(Dt 27:24). “Maldito quem aceitar pagamento para matar um inocente” (Dt 27:25). Em ambos os casos o assassinato é tratado primeiramente como pecado digno de maldição, uma vez que também quebra o sexto mandamento (Êx 20:13). Além disso, mesmo que aqueles que mandam matar permanecem no anonimato, e aqueles que matem secretamente não venham a ser punidos através das autoridades humanas, tais pecadores serão responsabilizados e penalizados da devida forma por Deus.

“Maldito quem não puser em prática as palavras desta lei” (Dt 27:26). O escritor de Deuteronômio deixa claro o seguinte para terminar o dodecálogo: a maldição alcançará todos os homens que não obedecerem à lei de Deus. Novamente a questão da obediência, não apenas intelectual ou ritual, mas seguido da prática, é colocado no centro de toda a discussão da lei. O espírito de toda a lei está em se obedecer ao Senhor com o coração. Essa obediência leva à verdadeira prática da vontade de Deus.

Thompson resume da seguinte forma o dodecálogo: “a presente lista consiste da proibição de imagens (VRS. 15), quatro violações de dever social ou filial (VRS. 16~19), quatro casos de irregularidade sexual (VRS. 20~23), dois casos de ferimento corporal (VRS. 24, 25) e uma exigência final abrangente, de que esta lei (instrução) fosse cumprida”[22].

Conclusão.

A lei, as punições, as maldições e a constante exigência divina do homem se afastar do mau nos levam a refletir sobre o pecado que habita no interior do homem. Como um homem pecador e caído pode se relacionar com um Deus santo? Como um Deus santo lida com a maldade e a pecaminosidade dos homens criados à sua imagem e semelhança? A aliança que Deus estabeleceu com o seu povo, a começar em Abraão, traduz o ato gracioso de Deus em alcançar o homem e redimi-lo de sua condição decaída. Somente dentro desse contrato o povo poderia desfrutar da real condição de ser “povo de Deus”.

A aliança que foi renovada através do ritual de Siquém seria um testemunho da graça de Deus sobre os que com o “amém” ratificariam os termos do contrato. As terríveis maldições que passam a ser mais detalhadas no capítulo 28 são as devidas punições para aqueles que foram chamados para serem “povo de Deus”, mas que arbitrariamente se colocam com condição contrária a YHWH.

Como argumentaria o apóstolo Paulo no Novo Testamento, a lei em si não pode trazer salvação plena a ninguém. Essa mesma lei que Deus dera ao seu povo e que é base do Pentateuco, particularmente de Deuteronômio, serviria para que o homem pudesse constatar da sua situação de pecado e afastamento do seu Criador. O rigor da lei e as maldições que se seguem às transgressões nos revelam um Deus que se aborrece e abomina todo e qualquer tipo de ato pecaminoso que afronte a sua santidade e justiça. Mais tarde o mesmo Paulo afirmaria que a lei serviria de “aio” para Cristo.

Vários estudiosos discordam entre si acerca da importância desse capítulo no conjunto da obra de Deuteronômio. Não foi objetivo desse trabalho provar nem a época e tão pouco a autoria desse capítulo em relação ao livro. Porém, independente de tudo isso, podemos crer que esse ritual de renovação da aliança está recheado com a preocupação de Deus acerca da condição espiritual, ética e social de seu povo. Pode ser até por isso que a ênfase desse capítulo e da descrição da cerimônia esteja esmagadoramente relacionada à questão do pecado e da maldição.

Assumindo que “o salário do pecado é a morte” (Rm 6:23), as maldições desse capítulo mostram o que acontece com alguém que se afasta de Deus em desobediência e rebeldia. A maior maldição talvez seja a morte entendida no seu sentido mais amplo, como a perda da vida de benção e paz desfrutada apenas em Deus. De acordo com Lasor, “a única explicação que pode ser inferida de Deuteronômio, ou de qualquer outra porção da Bíblia, é a santidade da relação de aliança”[23]. A maldade e o pecado são atitudes de afronta direta não somente à santidade do Criador, mas também em relação à santidade da vida que Deus deu a todos os seres humanos.

Esse ritual é de extrema importância no desfecho de Deuteronômio, uma vez que a lei  se torna realidade quando ela é outorgada (por Deus) e aceita com obediência (pelo povo). Tal ritual foi um ato representativo dessa realidade.

Referências bibliográficas.

BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Internacional, edição com concordância, Vida, 2001.

CHISTENSEN, Duane L., World Biblical Commentary. Deutoronomy 21:10~34:12. Vl. 6B. Thomas Nelson Publishres, Nashville, 2002.

DRIVER, S. R., A critical and exegetical commentary on Deteronomy.3rd. Edition, T&T Clark, Edinbugh, 1986.

GRAIGIE, Peter C., The Book of Deuteronomy. The new internacional commentary on the Old Testament. William B. Eerdmans Publishing Company, Michigan, 1976.

LASOR, William, HUBBARD, David A., BUSH, Frederic W., Introduçãoao Antigo Testamento. Vida Nova, São Paulo, 1999.

MAYES, A. D. H. The New century bible commentary. Deuteronomy. Marshall, Morgan & Scott Publishing, London, 1981.

THOMPSON, J. A., Deuteronômio. Introdução e comentário. Série Cultura Bíblica, Mundo Cristão, São Paulo, 1991.


[1] CHISTENSEN, Duane L., World Biblical Commentary. Deutoronomy 21:10~34:12. Vl. 6B. Thomas Nelson Publishres, Nashville, 2002, pg 651. Tradução livre.

[2] THOMPSON, J. A., Deuteronômio. Introdução e comentário. Série Cultura Bíblica, Mundo Cristão, São Paulo, 1991, pg. 250.

[3] GRAIGIE, Peter C., The Book of Deuteronomy. The new internacional commentary on the Old Testament. William B. Eerdmans Publishing Company, Michigan, 1976, pg 327.

[4] Tōrāh, ou seja, todas as leis de Deuteronômio.

[5] MAYES, A. D. H. The New century bible commentary. Deuteronomy. Marshall, Morgan & Scott Publishing, London, 1981, pg 340.

[6] Thompson levanta a possibilidade de que a cerimônia foi feita próxima a Gilgal e que pode ter se repetido no Monte Ebal conf. THOMPSON, J. A., Deuteronômio. Introdução e comentário. Série Cultura Bíblica, Mundo Cristão, São Paulo, 1991, pg. 252.

[7] MAYES, A. D. H. The New century bible commentary. Deuteronomy. Marshall, Morgan & Scott Publishing, London, 1981, pg 341.

[8] GRAIGIE, Peter C., The Book of Deuteronomy. The new international commentary on the Old Testament. William B. Eerdmans Publishing Company, Michigan, 1976, pg 328.

[9] Ou seja, Poderoso é o Deus de Israel.

[10] DRIVER, S. R., A critical and exegetical commentary on Deteronomy. 3rd. Edition, T&T Clark, Edinbugh, 1986, pg 297.

[11] GRAIGIE, Peter C., The Book of Deuteronomy. The new internacional commentary on the Old Testament. William B. Eerdmans Publishing Company, Michigan, 1976, pg 329.

[12] IBID. Pg 330.

[13] Os levitas participariam na recitação das maldições no monte Ebal conf. Dt 27:14.

[14] MAYES, A. D. H. The New century bible commentary. Deuteronomy. Marshall, Morgan & Scott Publishing, London, 1981, pg 345.

[15] DRIVER, S. R., A critical and exegetical commentary on Deteronomy.3rd. Edition, T&T Clark, Edinbugh, 1986.

[16] GRAIGIE, Peter C., The Book of Deuteronomy. The new internacional commentary on the Old Testament. William B. Eerdmans Publishing Company, Michigan, 1976, pg 331.

[17] CHISTENSEN, Duane L., World Biblical Commentary. Deutoronomy 21:10~34:12. Vl. 6B. Thomas Nelson Publishres, Nashville, 2002, pg 662.

[18] LASOR, William, HUBBARD, David A., BUSH, Frederic W., Introdução ao Antigo Testamento. Vida Nova, São Paulo, 1999, pg 135.

[19] THOMPSON, J. A., Deuteronômio. Introdução e comentário. Série Cultura Bíblica, Mundo Cristão, São Paulo, 1991, pg. 250.

[20] CHISTENSEN, Duane L., World Biblical Commentary. Deutoronomy 21:10~34:12. Vl. 6B. Thomas Nelson Publishres, Nashville, 2002, pg 662, e também em THOMPSON, J. A., Deuteronômio. Introdução e comentário. Série Cultura Bíblica, Mundo Cristão, São Paulo, 1991, pg. 255.

[21] De acordo com Thompson, esse costume era muito mais antigo, como se pode ver nas inscrições do Código de Hamurabe  que proíbe literalmente de se “descobrir a nudez do pai”. Antropologicamente, se costuma afirmar que a proibição do incesto foi um dos fatores civilizatórios da humanidade.

[22] THOMPSON, J. A., Deuteronômio. Introdução e comentário. Série Cultura Bíblica, Mundo Cristão, São Paulo, 1991, pg. 256.

[23] LASOR, William, HUBBARD, David A., BUSH, Frederic W., Introdução ao Antigo Testamento. Vida Nova, São Paulo, 1999, pg 135

Quando 2 ou 3 estiverem reunidos em meu nome…. para que mesmo? “Rápida” exegese de Mt 18:15~20

Introdução

Quem já não ouviu falar, geralmente dos nossos pregadores, que “Deus está presente onde estiverem pelo menos dois ou três reunidos”? Já escutei muito essa frase dita, principalmente, quando está faltando gente para começar o culto (fazendo uma mea culpa , talvez eu já tenha me utilizado dessa frase também). Esse é um daqueles textos mal-interpretados que, quando paramos para ler com atenção, o seu sentido muda completamente daquilo que estamos acostumados a entender. Será que o texto está falando da presença de Deus em meio à reunião dos irmãos simplesmente, ou há algo a mais?

E aquele versículo que diz que supostamente “Deus concederia tudo que fosse ligado por nós aqui na terra”? Será que isso abre espaço, para que, de acordo com alguns, possamos exercer nosso poder como filhos exigindo alguma demanda junto ao Pai? Certamente já ouvi muita coisa assim… Vamos fazer uma viagem pela primeira parte do capítulo 18, explorando o contexto e aprofundando na análise do texto propriamente dito para ver se realmente esses pressupostos tidos como “verdadeiros” são de fato plausíveis de acordo com um exame mais minucioso desse texto.

Esse pequeno “comentário” é fruto de um clube “clandestino” de exegese!! (risos!!). Aos meus irmãos clandestinos, dedico esse texto!

Contexto

No capítulo 18, Mateus nos relata uma série de discursos de Jesus acerca do tratamento interpessoal dentro da comunidade dos discípulos, ou em sentido mais estrito e atual, dentro da comunidade local dos irmãos. Nessa comunidade, as lógicas empregadas do mundo são totalmente invertidas: o maior é o considerado menor e o perdão é a solução definitiva para todos os conflitos interpessoais que podem ocorrer dentro desse povo de Deus.

Dos versículos 1 a 6, vemos Jesus responder à pergunta levantada pelos próprios discípulos: “Quem é o maior no Reino dos Céus?” (Mt 18:1b). Jesus coloca uma criança no meio deles e diz que aquele que se torna humilde como a criança entrará no Reino. É interessante que Jesus não responde diretamente à pergunta dos seus discípulos. Antes, ele expõe um modelo de “práxis relacional”: quando recebemos esses “pequeninos”, nos tornamos humildes habilitados à entrada no Reino. Entretanto, para quem faz tropeçar esses “pequeninos”, o destino é o “fogo eterno”.

Em seguida, Jesus conta uma das suas mais famosas parábolas: a Ovelha Perdida, mostrando aos seus discípulos que mesmo Deus, o Pai, se importa até mesmo com o “pequenino” perdido para trazê-lo de volta ao convívio dos demais, deixando, momentaneamente as suas 99 ovelhas: “o Pai de vocês, que está nos céus, não quer que nenhum destes pequeninos se perca” (Mt 18:14).

O trecho dos versículos 15~20 é de suma importância pois apresenta, de maneira prática, como a comunidade dos discípulos deve tratar um “irmão” que tenha ofendido, ou pecado, contra alguém da própria comunidade. A grande preocupação do texto está no processo de convencimento dentro da qual o “ofendedor” é posto, a fim de que entenda a sua situação de falta com o irmão e com Deus. Toda a tradição testemunhal da Torá é trazida: da conversa particular até a persuasão pública, diante da comunidade. Entretanto, como há sempre a possibilidade do pecador não se arrepender, Jesus ensina os seus discípulos a questão do ostracismo disciplinar (cf. vr. 17). Rienecker ressalta que esse trecho nos apresenta “as instâncias corretas que devemos percorrer na comunidade” (1) quando o assunto é disciplina.

Qual é o poder que a comunidade do Reino, dos discípulos de Jesus detêm? A decisão dessa comunidade  deve refletir a vontade de Jesus. Dentro dessa análise, um discípulo de Cristo nunca é concebido fora de sua própria comunidade. Essa comunidade que tem o “poder” de perdoá-lo diante da manifestação de arrependimento, ou de condena-lo a algum tipo de ostracismo. A comunidade onde Cristo se faz presente e onde sua vontade é refletida no julgamento dessa comunidade é o padrão desejável para as deliberações sobre assuntos tão incômodos como a eventual punição de alguém pertencente ao próprio grupo de irmãos.

É a partir desse ponto que Mateus relata a parábola do Servo Impiedoso, uma estória contada por Jesus diante do questionamento de Pedro: “Até quantas vezes devemos perdoar o irmão”. Embora o Servo Impiedoso tenha sido perdoado pelo rei de uma grande dívida, não teve a capacidade de transmitir a mesma graça a um conhecido que devia infinitamente menos do que a sua própria dívida. Se o relato prático dos vrs. 15~20 trata de um “ofendedor” impenitente, a parábola do Servo Impiedoso expõe a outra faceta da moeda, onde o “ofendido” não tem a capacidade de perdoar o “ofendedor”.

Basicamente, no capítulo 18 de Mateus temos vários ensinamentos de Jesus a respeito da vida comunitária e de como o pecado deve ser lidado dentro desse grupo. É dentro desse conceito que vamos explorar mais os versículos 15~20, com a questão da presença de Jesus no meio de “dois ou três”.

Análise do texto grego.

15 Ἐὰν δὲ ἁµαρτήσῃ [εἰς σὲ] (2) ὁ ἀδελφός σου, ὕπαγε ἔλεγξον αὐτὸν µεταξὺ σοῦ καὶ αὐτοῦ µόνου. ἐάν σου ἀκούσῃ, ἐκέρδησας τὸν ἀδελφόν σου·

Mas se o seu irmão pecar contra você, vá e mostre-lhe o erro a sós. Se ele te ouvir, você ganhou o teu irmão.

A primeira pergunta que surge a essa altura é a seguinte: de que tipo de disciplina Jesus está ensinando aos seus discípulos? Será que é algo meramente punitivo? Ou há um objetivo claro de uma restauração?

Jesus dirige-se de maneira direta aos seus discípulos. O uso de ἀδελφός indica que Jesus ainda está expondo acerca da questão relacional dentro do seu Reino seguindo a seqüência do capítulo 18. Diante de um caso onde um irmão ofende o outro, quem é o agente primário dessa disciplina? Dependendo da presença ou não da expressão εἰς σὲ (contra ti), podemos ter o sentido de que o próprio ofendido vai ao encontro do ofendedor (nesse sentido vão a NVI, ARA e ARC, que pressupõe a presença de εἰς σὲ no texto), ou de que qualquer um que tenha ciência da culpa do outro vá ao encontro do ofendedor para conversar com ele, instruindo (nesse sentido, BJ e Rienecker ressaltam a ausência de εἰς σὲ nos melhores manuscritos).

O uso do verbo ἐλέγνω, palavra que no Evangelho de Mateus ocorre somente aqui, sugere que o ato de “trazer à tona” e de “expor” a ofensa, o pecado do irmão, e tem como objetivo não apenas o simples fato de mostrar-lhe o erro, mas também de conduzir o “ofendedor” ao arrependimento.  Segundo Carson, é um exercício de convencimento. Como Buchsel aponta, uma “disciplina educativa” (3). Esse processo pedagógico, que já era uma prática dentro da tradição da Torá (cf. Lv 19:17), começa no encontro a sós entre o ofendedor e o ofendido. Essa atitude tempestiva e direta pouparia a difusão desnecessária desse conflito no conhecimento de toda a comunidade (4): é o primeiro passo apresentado por Jesus. Se essa primeira etapa fosse bem sucedida, ou seja, se o ofendido pudesse convencer o ofendedor de seus erros e conduzi-lo ao arrependimento, ele ganharia esse irmão, ou seja, o ofendedor seria restaurado, tanto em termos relacionais, como também diante de Deus, pois esse pecado ser-lhe-ia perdoado.

16 ἐὰν δὲ µὴ ἀκούσῃ, παράλαβε µετὰ σοῦ ἔτι ἕνα ἢ δύο, ἵνα ἐπὶ στόµατος δύο µαρτύρων ἢ τριῶν σταθῇ πᾶν ῥῆµα·

Mas se ele não te ouvir, leve com você uma ou duas pessoas, para que pela  boca de duas ou três testemunhas se confirme toda palavra (acusação).

Jesus leva em consideração a hipótese da primeira etapa pode não ter êxito. Nesse momento o problema deixa de ser algo restrito à relação ofendedor-ofendido e passa a envolver as figuras das testemunhas (membros da comunidade, líderes). O uso jurídico dessas figuras já era garantida na Torá. Mateus faz uma citação resumida de Dt 17:6:

 Mt 18:16: “ (…) ἵνα ἐπὶ στόµατος δύο µαρτύρων ἢ τριῶν σταθῇ πᾶν ῥῆµα”.

Dt 19:15 (LXX): “(…) ἐπὶ στόματος δύο μαρτύρων καὶ ἐπὶ στόματος τρίῶν μαρτύρων σταθέσεται πᾶν ῥῆμα”.

Aquilo que Deuteronônimo enxerga como um caso de resolução de conflitos interpessoais dentro do mundo secular normal não necessariamente religioso, Jesus estabelece como um procedimento para dentro de sua própria comunidade de seguidores (5).

De acordo com Rienecker, “a recomendação de incluir uma ou duas testemunhas não apenas deve aumentar a autoridade da advertência, mas também deve servir para esclarecer os fatos que a pessoa eventualmente negue ou distorça” (6). O apelo implícito é para que o ofendido e essas testemunhas possam, mais uma vez, persuadir o ofendedor a analisar seu erro e, por fim, conduzir o ofendedor ao arrependendimento, para que a sua condição dentro da comunidade do Reino seja restabelecida.

17 ἐὰν δὲ παρακούσῃ αὐτῶν, εἰπὲ τῇ ἐκκλησίᾳ· ἐὰν δὲ καὶ τῆς ἐκκλησίας παρακούσῃ, ἔστω σοι ὥσπερ ὁ ἐθνικὸς καὶ ὁ τελώνης.

Mas se ele recusar-se a ouvi-los, conte isso à igreja. Mas se ele também não ouvir à igreja, considere-o como gentio e publicano.

A última instância, para o caso que nem a presença persuasiva das testemunhas tenha surtido efeito, é a comunidade inteira. O uso do verbo παρακοῦω indica uma forte resistência proposital em não dar ouvidos aos apelos persuasivos dos envolvidos. A esse ponto, só resta levar o caso ao conhecimento da ἐκκλησία, “a igreja local” (7). A comunidade então assumiria o papel último a tentar convencer o ofendedor a respeito dos seus pecados tendo em vista o seu arrependimento.

Jesus leva o caso até as últimas conseqüências: e se mesmo assim, o irmão-ofendedor recusar-se a dar atenção à disciplina da comunidade? A única saída é o seu ostracismo, ou seja, quando a comunidade não mais considera-o como irmão, mas como gentio e publicano (ὁ ἐθνικὸς καὶ ὁ τελώνης). Essas duas classes eram alvo do ostracismo velado e explícito dos  judeus. De acordo com Hagner, o ostracismo não é apenas um ato de expeli-lo da comunidade, mas também de categoriza-lo como “gente da pior espécie” (8). Entretanto, essa excomungação não tem o objetivo na destruição derradeira da pessoa, bem como sua condenação peremptória. A chance do arrependimento continua, uma vez que Jesus também  buscou os gentios e publicanos conduzindo-os ao arrependimento (o caso do próprio Mateus que é autor desse Evangelho).

Entretanto, Carson apresenta uma visão diferente. Para ele, “é uma exegese pobre considerar que essas pessoas sejam tratadas compassivamente. O argumento e os paralelos no Novo Testamento (Rm 16:17, 2Ts 3:14) indicam que Jesus tinha a excomungação em mente” (9).

18 Ἀµὴν λέγω ὑµῖν, ὅσα ἐὰν δήσητε ἐπὶ τῆς γῆς ἔσται δεδεµένα ἐν οὐρανῷ καὶ ὅσα ἐὰν λύσητε ἐπὶ τῆς γῆς ἔσται λελυµένα ἐν οὐρανῷ.

Digo-lhes a verdade: Tudo o que vocês ligarem na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que vocês desligarem na terra terá sido desligado nos céu.

É a segunda vez que Mateus usa a terminologia “ligar” e “desligar”. Em 16:19, Mateus relata a fala de Jesus dirigida a Pedro: “Eu lhes darei as chaves do Reino dos céus; o que você ligar na terra terá sido ligado nos céus, e o que você desligar na terra terá sido desligado nos céus”. Entretanto esse poder é conferido à comunidade no que tange a “disciplina na igreja” (10) desde que essa comunidade faça valer a presença de Cristo em seu meio, obedecendo-O e submetendo-se à Sua Vontade.

Embora os verbos no perfeito δεδεµένα e λελυµένα possam ser traduzidos como “será desligado… será ligado” tal tradução incorreria no erro de conferir à comunidade um poder muito maior do que ela fato tenha. Assim, a tradução no futuro do pretérito no português da NVI “terá sido desligado… terá sido ligado” faz mais sentido, estabelecendo a vontade divina à priore da decisão da igreja. Ao ligarmos aqui na terra, de acordo com Kirschner (14), estaremos nos afinando com a soberania de Deus. A comunidade dos cristãos não tem controle sobre a vontade divina.

19Πάλιν [ἀμὴν] (11) λέγω ὑµῖν ὅτι ἐὰν δύο συµφωνήσωσιν ἐξ ὑµῶν ἐπὶ τῆς γῆς περὶ παντὸς πράγµατος οὗ ἐὰν αἰτήσωνται, γενήσεται αὐτοῖς παρὰ τοῦ πατρός µου τοῦ ἐν οὐρανοῖς.

Também (em verdade) digo a vocês: Se dois concordarem sobre qualquer coisa que pedirem isso será feito a vocês pelo meu Pai que está nos céus.

Pelo uso de Πάλιν, Jesus ratifica mais uma vez esse ensinamento. Em se tratando de qualquer assunto (παντὸς πράγµατος), a vontade de Deus é ecoada através do testemunho verdadeiro das testemunhas e também da comunidade. Hagner diz que: “o que os discípulos concordarem na terra em assuntos disciplinares da igreja pode ser considerado como também sendo a vontade dos céus” (12). Claro que isso só se torna realidade, quando essa comunidade está alinhada à soberania divina.

20 οὗ γάρ εἰσιν δύο ἢ τρεῖς συνηγµένοι εἰς τὸ ἐµὸν ὄνοµα, ἐκεῖ εἰµι ἐν µέσῳ αὐτῶν.

Pois onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali eu estarei no meio deles.

Esse versículo deve ser entendido dentro do contexto daquilo que está sendo proposto por Jesus, a saber, a disciplina dentro da comunidade do Reino de Deus, a igreja. Não é uma promessa divina concernente à respostas de orações nem tão pouco sobre a presença de Cristo no culto cristão. Jesus diz enfaticamente que Ele estaria presente no meio de dois ou três que se reunissem para deliberar acerca de assuntos disciplinares, em outras palavras, essas testemunhas e a comunidade estariam sob as ordens de Jesus. A decisão da comunidade é o eco do alinhamento com a vontade divina. Não se trata de uma concessão divina para decisão da comunidade, mas à conformação daquilo que o céu já decidiu por meio do nome de Jesus. A ruptura do céu e a terra provocada pelo pecado é reunida por Jesus também em questões de cunho disciplinar dentro da comunidade, a igreja local.

Hagner salienta, por fim, que essa presença não deve ser entendida como uma presença metafórica, mas da presença real do Cristo ressurreto. Essa “presença” encontra paralelo com os ensinamentos rabínicos que diziam que a “shekinah” de Deus estaria presente quando dois se reunissem para estudar a Torá (13). Jesus é a presença de Deus real no meio de Sua comunidade em todos os momentos, até para esse mais desagradáveis relacionados à disciplina de um irmão.

Conclusão

A comunidade de Jesus deve lidar com a questão da disciplina de maneira a replicar dentro de si a vontade de Deus que deve ser estabelecida na terra assim como é nos céus. A presença de Jesus no meio da decisão da comunidade, particularmente acerca da disciplina, é o elo de ligação entre a realidade espiritual-celestial e a terreno-física. A questão de ligar na terra não deve ser compreendido como um ato inicial, mas sim, de uma resposta àquilo que já foi estabelecido nos céus como vontade divina. À luz disso, não temos base, de acordo com o texto, de reivindicarmos nada diante de Deus com o pretexto de “termos ligado essa nossa vontade na terra para que seja ligada nos céus”: o que o texto sugere é exatamente o oposto.

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Notas Bibliográficas

RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Comentário Esperança. Esperança, Curitiba, 1998, pág. 317.

2 Cf. Metzger, o uso de εἰς σὲ pode ser uma interpolação ao texto original feito pelos copistas em virtude do uso de εἰς ἐμέ  no vr. 21. Há também manuscritos que omitem a expressão. Vide in METZGER, Bruce M., A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2a. Edição, Deutsche Bibelgesellschaft e UBS, Sttutgart, 2007, pág. 36. Manuscritos importantes como o Vaticano (B) e o Sinaítico (א) omitem εἰς σὲ. Vide in RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Comentário Esperança. Esperança, Curitiba, 1998, pág. 317.

3 Cf. TDNT, verbete ἐλέγνω.

4 HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 531.

5 CARSON, D. A., Matthew, Mark, Luke. The Expositor’s Bible Commentary, Vl. 8, Zondervan, Michigan, 2006, pág. 402.

6 RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Comentário Esperança. Esperança, Curitiba, 1998, pág. 317.

7 HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 532.

8 Ibid. pág. 532

9 CARSON, D. A., Matthew, Mark, Luke. The Expositor’s Bible Commentary, Vl. 8, Zondervan, Michigan, 2006, pág. 402.

10  HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 532.

11 A versão da UBS e a Nestle-Alland acrescentam ἀμὴν precedido do λέγω. Cf. Metzger, não há consenso no uso ou não. Alguns manuscritos a suprimiram considerando redundante devido uso no versículo anterior. Vide in METZGER, Bruce M., A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2a. Edição, Deutsche Bibelgesellschaft e UBS, Sttutgart, 2007, pág. 37

12 HAGNER, Donald A., Matthew 14~28, WBC, Thomas Nelson, 1995, pág. 533.

13 Ibid, pág. 533. Também in TASKER, R. V. G., Mateus. Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica, Vida Nova, São Paulo, 2008, pág. 141.

14 Kirschner, Estevam. Anotações de aula.

Efeitos Presentes e Futuros da Justificação-Reconciliação. Exegese de Rm 5:1~11

Resenha: A Interpretação Bíblica, de Roy B. Zuck

ZUCK, Roy B. A Interpretação Bíblica, Editora Vida Nova, São Paulo, 356 páginas

Diante do exemplo do eunuco de At 8:27 e da leitura da Lei em Ne 8:1,  Zuck mostra, na introdução de seu livro, a importância da interpretação bíblica. A compreensão do que está escrito é de suam importância para sabermos acerca da vontade de Deus para a vida da comunidade cristã. A importância da compreensão correta do texto de faz necessário para que uma correta hermenêutica, ou seja, uma correta interpretação e aplicação aos nossos dias seja possível.

O autor elenca uma série de motivos para a inportancia da interpretação bíblica: importância da compreensão correta para o ensino correto da bíblia, a interpretação sucede a observação e intepretação como algo primordial para a correta aplicação. Porém a tarefa de interpretar e corretamente a Palavra de Deus não é simples. Existem muitos fatores que devem ser levados em consideração, o que coloca certo grau de complexidade na hermneutica de certas passagens mais obscuras das Escrituras. Dentro os fatores que o interprete da Palavra deve tomar cuidado é quando existem abismos que nos separam do texto, tais como o abismo cronológico, geográfico, cultural, lingüístico, lietrário e sobrenatual. Porém, o que significa Hermenutica, de acordo com Zuck, o sentido mais normal do termo é “explicar” ou “traduzir”, uma vez que “uma tradução é uma explicação”[1].

Há uma diferença sensível entre Exegese e Hermenutica. Enquanto que a Exegese cuida se explicar o texto a partir do seu contexto histórico, levando em consideração todos os originais e aspectos lingüísticos originais nas quais a Palavra foi escrita. Feito isso, a tarefa da Hermenêutica é traduzir, ou explicar tais verdades, aplicando-as em nosso contexto hodierno, sob a forma de pregação. Enquanto que a exegese é um exercício individual, a hermenêutica é um exercício coletivo.

A atividade hermenutica da bíblia não pode ser exercida por qualquer pessoa. É necessário que antes a pessoa seja regenerada, uma vez que a verdade da Escritura só poderá ser discernida mediante a ação do Espírito Santo (1Co 2:14). Sem embargo, os incrédulos podem ler e entender os escritos da bíblia, mas somente os cristãos podem perceber a sua realidade espiritual. Alem disso, reverencia diante da Palavra, oração, obediência,  e humildade em aprender são condições fundamentais para o interprete da bíblia.

Zuck realssa o papel do Espírito Santo na tarefa de uma correta intepretação bíblica, uma vez que as Escrituras foram divinamente inspiradas. Por isso, a tarefa hermenutica pode ser exercida por qualquer cristão. A hermenutica não é monopólio de ninguém.  Porém, o ensino e a aprendiagem de pessoas capacitadas e de fontes confiáveis se torna necessário para que a nossa interpretação não seja ofuscada pela nossa vontade ou interesse.

No primeiro capítulo de seu livro, Zuck levanta um breve histórico da hermenutica bíblica desde Esdras, com a restauração da prática da Lei de Moisés, pós-exílio, passando pela tradição rabínica medieval, pela Reforma protestante, até chagar aos nossos dias com Rudolf Bultman. A importância de Esdras está no fato de que ele, juntamente com os seus auxiliares tiveram que ler e reensinar o povo sobre a Lei (lembrando que o povo voltou do exílio falando aramaico e a Lei estava em Hebraico, assim, o ato de interpretação passava pela tradução do texto).

Entrando mais na tradição rabínica, Zuck cita três nomes: Akiba, Hillel e Shammai. Akiba teve um papel semelhante a de Esdras, mas só que dentro do contexto de reconstrução do judaísmo apos a destruição do Templo de Herodes (ele preside o Concílio judaico de Jâmnia). Hillel e Shamai são duas escolas de interpretação rabínica que se contrapõe. Outra herança judaica é a alegorização, presente nos trabalhos de Fílo de Alexandria, que teve o cuidado de espelhar todo o Antigo Testamento à luz da cultura helênica. Nesse sentido, a tradução da Septuaginta ajudou nessa “interface” com a filosofia grega.

Analisando a Patrística, figuras importantes deram contribuições importantes à Hermenêutica. Justino Mártir fazia muitas citações do Antigo Testamento para provar o prenuncio de Cristo. Também teve um esforço de justificar o cristianismo através do neoplatonismo. Irieu  de Lyon, contrapondo-se aos gnósticos, colocou Cristo como centro  hermenutico.  Nesse templo, duas escolas de interpretações cristas se destacaram: a escola de Alexandria, mais alegórica, e a escola de Antioquia, mais literalistas.

Findando a Patrística e inaugurando a Idade Media, temos os trabalhos importantes de dois teólogos: Jerônimo, que faz a versão latina da Septuaginta, a Vulgata, e Santo Agostinho, que estabelece os “quatro sentidos” da interpretação: Littera gesta docet [A “letra” ensina eventos], Quid credas allegoria [O que crês, “alegoria”], Moralis quid agas [O “moral”, o que fazes], Quo tendas anagogia [Para onde vais, “anagogia”]. Durante a Idade Media, onde houve pouca efervecencia no tocante à interpretação, as vertentes literalistas e alegoristas também buscavam o seu espaço. Exemplos dessas suas correntes são Bernado de Claraval (alegorista) e Tomás de Aquino (literalista).

Foi durante a Reforma que houve uma drástica mudança na hermenutica bíblica. A começar de Martinho Lutero, João Calvino, Zuinglio, e outros, o sentido literal das escrituras foi resgatado com a volta da importância das línguas originais (hebraico, aramaico e grego). Martinho Lutero teve o trabalho de traduzir a Bíblia para o vernáculo alemão a partir dos originais. Calvino, por sua vez, em sua tempativa de resgatar o sensus litteralis da bíblia, rejeitou o método alegórico de hermenutica. De acordo com Zuck, o abandono do mºetodo alegórico foi uam revolução, uma vez que esse método estava arraigado na igreja desde a Patrística. Zuck, tem a preocupação de mostrar alguns exemplos de alegorização. A reforma aceitou o cânon original das Escrituras fechadas em 66 livros. Como resposta, a Igreja Católica, no Concílio de Trento (1545~1563), inclui no cânon oficial os livros apócrifos.

O Iluminismo e o racionalismo trouxeram grandes problemas à interpretação da bíblia, uma vez que todos os aspectos sobrenaturais foram relegados a categoria de mito ou inverdade. A bíblia passou a ser lida à luz da ciência. Tudo o que entrava em choque com os métodos científicos e empíricos era colocado em Duvida. Reflexo disso veio com o movimento liberal, que coloca a bíblia em um sentido muito subjetivo, ou seja, nega a inerrancia e a veracidade histórica dos fatos bíblicos. Nessa época, surge a hipótese da autoria do Pentateuco, formulada por Wellhausen (J, E, D, P). Bultiman, pregava  a demitização de todos os eventos sobrenaturais da escritura.

Como tentativa de volta à ortodoxia, teólogos como Karl Barth[2] tentaram trazer de volta o peso literal das Escrituras, refutando os teólogos liberais.

Zuck chega à conclusão de que o estudo da historia da hermenutica é fundamental para que haja sempre uma ênfase na “interpretação histórica, gramatical e literária da Bíblia”[3].

A partir dessa base histórica, Zuck desenvolve sobre alguns axiomas sobre a bíblia, a saber, que, primeiramente, a bíblia é um livro humano, escrito, ou seja, escrito dentro de uma coerência gramatical e diferentes contextos sociais e culturais. Sendo assim é necessário que na hora de lermos e interpretarmos os sentidos que o texto traz, é importantíssimo darmos atenção ao que foi escrito e ao que o autor originalmente quis passar para os seus leitores. Por outro lado, mesmo a bíblia sendo um livro escrito por homens, ela é inteiramente divina, ou seja, a escritura foi inspirada por Deus.

O autor defende que as escrituras, e não os escritores, são inspiradas por Deus para a revelação de sua vontade aos homens. Ao longo das escrituras, há uma progressividade na revelação, ou seja, alguns temas teológicos sofreram um processo de desenvolvimento ao longo do tempo, ou seja, ao longo do desenvolvimento do Antigo para o Novo Testamento. Porém, a Bíblia não pode ser entendida como o livro que desvenda todos os mistérios. Existem partes e trechos que permanecem nesse mistério, uma vez que não podemos entender a plenitude da vontade de Deus.

Nos capítulos quatro, cinco e seis, o autor tenta entender três tipos de transposições: a cultural, a gramática e a literária. Na primeira, é salientado que a cultura, sociedade, usos e costumes da época em que os livros da bíblia foram escritos são muito diferentes daquelas que vivemos hoje. Assim, a Escritura deve ser entendida à luz do seu contexto histórico e cultural. Semelhantemente, há o abismo gramatical. Pressuposto que a bíblia foi escrita originalmente em ou hebraico, aramaico e grego, uma boa exegese e hermenêutica devem partir da análise cuidadosa da semântica, sintaxe e demais estruturas gramaticais dessas línguas. Não há duvidas que muitas palavras possuem múltiplos significados e que em muitos casos até os manuscritos divergem na aplicação ou não de uma palavra. Por isso, é necessário um zelo a mais quanto às línguas originais para que o homem de hoje possa entender da melhor maneira possível o propósito e o sentido original das Escrituras. Em último lugar, Zuck chama a atenção ao abismo literário, ou seja, a bíblia é formada por uma série de diferentes tipos de formas literárias variante desde a narrativa, passando por códigos legais e chegando à poesia e à profecia. Assim, na hora de intepretarmos algum texto, devemos situá-lo também dentro de sua classificação literária a fim de que não corramos o risco de fazer mal uso tanto do texto quanto do seu sentido.

A história da interpretação bíblica sempre esteve dividida entre dois grupos basicamente: os literalistas e os alegoristas. Uns interpretam a bíblia seguindo o rigor gramatical e original do texto, já outros levam a bíblia para um eventual sentido mais místico. Sem embargo, Zuck não descarta de vez a visão alegorista de interpretação, porém, há uma precaução maior por parte do autor em indicar que tal forma de interpretação é aquela que mais se afasta do sentido real de muitos textos da bíblia.

O sétimo capítulo tem uma relevância muito grande em apontar de maneira bem sistemática a maioria das formas de figuras de linguagem que aparecem nas Escrituras. Tais figuras não podem ser lidas literalmente, mas sim compreendidas pelo seu sentido implícito. Muitas vezes lidaremos com expressões idiomáticas, metáfonas, antorpomorfismos e etc, que deverão ser, na leitura, identificados e interpretados como tal. O capítulo oitavos dá uma atenção especial à ultilização de símbolos pelos autores da bíblia, ou seja, a bíblia é um livro repleto de símbolos que vão sendo utilizados para indicar verdades mais concretas. Um exemplo disso dentro da simbologia da bíblia é a figura de Melquisedeque, que aponta para o sacerdócio vitalício de Cristo. Tais símbolos também devem ser lidos de maneira correta para a compreenção mais fidedigna da verdade da Escritura.

No capítulo nono, Zuck faz uma análise de como as Parábolas devem ser lidas e interpretadas. Talvez ao lado das profecias, as Parábolas correm num risco maior de serem sumariamente alegorizadas e seus sentidos mistificados ao extremo. Porém as Parábolas eram nada mais histórias cotidianas do povo, no caso judaico, que traziam uma simples lição por de trás delas. Segundo Zuck, até Santo Agostinho caiu no grande perigo da alegorização quando tentou explicar na Cidade de Deus acerca da Parábola do Bom Samaritano. Novamente, podemos ver o zelo do autor em levar ao etendimento de que a alegorização nos distancia do sentido e do propósito original do texto e se seus autores. No capítulo que se segue a este, a profecia também é analisada nos mesmos moldes. Sem duvida, a profecia é a maior vitima tanto da má interpretação quanto da alegorização e também da literalização, ou seja, todas as correntes de interpretação bíblica correm num perigo de deturpar o sentido original do texto. O exemplo que o autor nos dá acerca dessa constatação é a respeito das profecias escatológicas. Cada corrente escatológica: milenistas, amilenistas, dispensacionalistas, etc, buscam encaixar as interpretação segundo as suas doutrinas, o que viola a integridade do texto em alguns casos. Vale citar as cinco condições que Zuck coloca para a melhor intepretação de profecias:

  1. o que é condicional ou incondicional?
  2. O que é figurado e simbólico e o que não é figirado?
  3. O que já se cumpriu e o que ainda aguarda cumprimento distante?
  4. Que interpretação Deus oferece na própria passagem?
  5. Qual a interpretação depreendida das passagens paralelas?[4]

Algo que é interessante no Novo Testamento e que foi bem desenvolvido por Zuck nesse livro, é a utilização de textos do Antigo Testamento no Novo. Muitos livros como Mateus  e Romanos, por exemplo, carregam seus escritos com citações diretas ou indiretas do Antigo Testamento. Ele aponta que mais de 10% do Novo Testamento é constituído de citações do Antigo, sendo que os Profetas e o Pentateuco são os mais citados. Segundo Zuck, esse recurso é utilizado basicamente para mostrar que o Novo Testamento é a continuação da atuação divina e que o Novo completa tudo o que foi dito e predito no Antigo Testamento. Também o Novo Testamento, dentro do conceito de Revelação Progressiva, traz elementos que explicam textos e conceitos obscuros no Antigo. Porém o maior motivo é fazer convergir na figura de Cristo a plenitude de toda a Antiga Aliança.

O livro termina com uma reflexão de como a Palavra de Deus deve se aplicada em nossos dias. Essas dicas são de extrema importância, muito mais para nós brasileiros, membros de igrejas brasileiras, que tem uma tendência a não fazer uma analise criteriosa do texto antes de interpretar e ensinar.  Por isso, segundo Zuck, a aplicação deve estar firmada na interpretação correta do texto, levando em consideração tudo aquilo que foi discorrido por ele anteriormente. Não somente isso, descobrir o que o autor quis passar de mensagem originalmente é fundadmental para aplicarmos hoje a Palavra em nossas vidas. Porém essa aplicação também deve ser feita de maneira que as pessoas de hoje entendam, numa linguagem contemporânea, baseada no aspectos fundamentais da hermenêutica. Se a cautela gramatical, contextual da leitura do texto é fundamental, a atuação e a ajuda do Espírito Santo em nossas vidas é imprescindível: não há como lermos, entendermos, aplicarmos e vivermos as verdades das Escrituras sem a mediação do Espírito Santo, que nos constrange e nos leva a viver uma vida que agrade a Deus, mediante sua Palavra.

Esse livro é de grande importância dentro do contexto teológico brasileiro, pois ajudar a irradiar a luz sobre muitas práticas erradas e mal sucedidas de interpretação e aplicação da bíblia. Com base na leitura desse livro, o leitor poderá chegar à conclusão de que a interpretação e a tarefa hermenêutica não é um simples exercício de leitura, mas sim, um exercício de descoberta, estudo, procura, amor e zelo pelo texto e pela motivação original dos autores que nos legaram a revelação de Deus expressa na Bíblia.


[1] Pág. 21.

[2] Principalmente em seu Comentário sobre Romanos.

[3] Pág. 67

[4] pág 287.